Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.
'Livro é resistência', diz Valter Hugo Mãe em aula em biblioteca
Escritor português se veste de preto no 7 de Setembro na Balada Literária na periferia de SP
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"Livro é resistência” diz Valter Hugo Mãe, autor de sete romances, entre eles “A Máquina de Fazer Espanhóis” (2010).
Na plateia, cerca de 300 pessoas lotam o pátio da Biblioteca José de Anchieta, em Perus, na Grande São Paulo, depositária de 36 mil exemplares e inaugurada na década de 1960 graças à mobilização da comunidade local.
São 14h de sábado (7), Dia da Independência, em um setembro que entra para a história da censura no país. O prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), ordenara na véspera o recolhimento de todos os exemplares da HQ "Vingadores" à venda na Bienal do Livro, por considerar impróprio para crianças o beijo gay ilustrado no romance gráfico da Marvel.
“Imagine que ontem vimos o incômodo com um beijo gay. Achei que a idade média tinha acabado há séculos, mas não tenho certeza”, ironiza o escritor português, convidado a dar uma aula aberta sobre o poder da literatura, mais especificamente o da poesia feita por mulheres de além-mar e daqui.
Mãe foi convidado especial da 14ª Balada Literária, que homenageia neste ano o educador Paulo Freire, patrono da educação brasileira.
“Enquanto lá eles celebram armas e canhões, nós aqui celebramos a poesia e a educação”, compara o escritor Marcelino Freire, curador do evento, ao se referir ao 7 de Setembro marcado pela convocação do presidente Jair Bolsonaro (PSL) para a população se vestir de verde e amarelo.
Sob a sombra de uma tipuana e de camiseta preta com estampas florais, Mãe estava em sintonia com o luto nas vestes de parte da plateia em protesto contra retrocessos e cortes na educação e queimadas na Amazônia.
O escritor português é saudado também pela educadora Bel Santos Mayer. “Bibliotecas são capazes de fazer jovens mudar de lugar”, disse ela, sobre a experiência de fazer de um cemitério espaço de leitura em Parelheiros. Bel parafraseou Mãe citando uma frase famosa do escritor: “Bibliotecas são tapetes voadores”, capazes de nos transportar para outros mundos.
Antes de transportar os presentes para o planeta da poética feminina e feminista, o palestrante destacou o fato de estar numa biblioteca pública na periferia de São Paulo. “Se não fosse a escola pública, eu seria operário, pois sou de uma família de operários ”, afirma. “É significativo também sair do centro e vir para mais longe, para a periferia.”
Estar em Perus, distrito da zona noroeste de SP, ainda teve um significado simbólico. “Encontros para debate são manifestos pela democracia que se efetiva em todos o lugares e convida as pessoas para outras praças, além dos centros”, explica Mãe à Folha, ao final da aula.
Durante duas horas de uma tarde ensolarada, ele reforçou a importância do conhecimento no Brasil e no mundo de hoje, “quando se vê um estranho orgulho da ignorância”.
Otimista, Mãe acredita que a sombra do obscurantismo vai passar. “Do horror e do retrocesso atual vai-se fabricar um novo e belíssimo tempo.”
POESIA CENSURADA
Certeza embalada pela força da poesia que, ele define, como a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo. “É linguagem de vanguarda. A poesia chega primeiro”, reafirma.
Para o escritor, o século 21 é o das mulheres, mais especificamente, o das poetisas. Fala introdutória para elencar as autoras portuguesas preferidas, aquelas que “dizem coisas que não lhes eram antes permitidas dizer”.
Começou a aula evocando uma poeta do século passado, Judite Teixeira (1880-1959), autora de versos “um bocadinho lésbicos”, segundo ele. Por elogiar o corpo feminino, foi acusada de ser bruxa e censurada.
Na sequência, Mãe lê um poema “lindo, lindo”, da amiga “brutalmente antipática e genial”, Isabel de Sá, 67, lésbica e casada há 45 anos, que denuncia o sistema de opressão e poder.
“Fui amante da morte e da beleza./ Vi a loucura, acreditei na vida./ Da infância falei como lugar de abismo./ O prazer foi também a grande fonte de perturbação e alegria. Lembrei as mulheres que recusaram submeter-se, escrevi palavras fúnebres.”
A aula/sarau continua com versos de Adília Lopes, apresentada como autora que “desmistifica o que é escrever poesia, ao fazer um manifesto de um feminismo desenfreado e de dor existencial que nenhuma outra mulher fez”.
Já Margarida Vale de Gato, autora de “Mulher ao Mar” é saudada como alguém capaz de jogar com a intelectualidade e “se permitir foder” em prosa e verso, como os homens já se permitiam.
FARTO DO AMOR
Gancho para o escritor falar de amor. “Estou farto do amor. Sou contra”, deixa escapar no meio da aula.
Inquirido sobre a declaração na rodada de perguntas, ele esclarece, brincalhão, que está sozinho desde o século passado. “Apostei demasiado e muitas vezes no amor. Era muito entregue.”
Faz a plateia gargalhar ao dizer que não está em aplicativos de paquera e que, prestes a completar 48 anos em 25 de setembro, desistiu de achar a cara-metade.
Mãe diz ter abdicado do amor romântico, mas faz as vezes de cupido literário entre dois dos maiores poetas brasileiros: Adélia Prado e Manoel de Barros (1947-2014).
“Fico desarmado com a candura dela, que não é infantil. Enquanto a ternura dele é para toda a vida. Eles deviam casar e ter filhos. E o filho seria o Messias. Ia salvar o mundo.”
A escrita tem poder, diz ele, e o escritor, o dever de se posicionar. “Quem não tem nada a dizer, que enfie seu texto no rabo”, provoca. “Não faço passatempo nem palavras cruzadas.”
Em seu próximo romance, Mãe tem muito a dizer sobre a Amazônia. Está trabalhando na história de amizade entre um índio e um menino negro no século 19, narrada pelo curumim. “O Brasil que me interessa não é o que os portugueses fizeram, mas o dos povos originários. Não é uma invenção branca. Nem de 1500. Já existia.”
Um convite à resistência, à leitura e à própria existência, como escreveu em “A Desumanização”. “Só os livros explicam tudo. As pessoas que não leem apagam-se do mapa de Deus.”
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