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Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

A desculpa do lobo

Dizer que guerras antigas entre indígenas justificam a perda de suas terras atuais é fábula do lobo e do cordeiro

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Quem é indígena neste país (bem, em quase qualquer país) não tem direito nem a uma semana de paz. Mal o Supremo Tribunal Federal parecia ter enterrado a tese canalha do marco temporal para a demarcação de terras dos povos originários e o excelso Senado da República já foi se prontificando a ressuscitar o cadáver da ideia.

No debate público sobre o tema, poucas coisas me enfurecem mais do que o nível subterrâneo de alguns argumentos em favor do marco temporal, seja na tribuna do Congresso, seja nas caixas de comentários desta Folha.

Lá e cá têm pipocado sujeitos que dizem, por exemplo, que não há motivo para restituir aos indígenas as terras que perderam porque, veja bem, eles também seriam "ladrões de terras".

Indígenas Xokleng comemoram a votação contra o marco temporal no Supremo Tribunal Federal - Ueslei Marcelino - 21.set.23/Reuters

Afinal, os ancestrais dos indígenas atuais não teriam exterminado ou assimilado o povo de aparência africana ao qual pertencia a célebre "Luzia", que viveu em Minas Gerais faz uns 12 mil anos? E os grupos da família linguística tupi-guarani, tão comuns no litoral brasileiro na época do primeiro contato com os europeus, também não seriam invasores antropófagos vindos da Amazônia, que comeram os construtores de sambaquis e destruíram a civilização marajoara séculos antes de Cabral?

Já vou entrar no mérito dessas afirmações (alerta de "spoiler": quase todas estão erradas). Ainda que fossem verdadeiras, porém, chama a atenção o fato de elas quererem transformar o ditado "ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão". Ou o de não passarem de uma paródia da fábula do lobo e do cordeiro —aquela na qual o lobo, incapaz de provar que o cordeiro lhe fizera alguma afronta, simplesmente berrava "se não foi você, então foi seu pai ou seu avô" e avançava na jugular do filhote.

Mas voltemos aos fatos, ainda que eles importem pouco para o Senado. Primeiro, a ideia de que o povo de Luzia equivale a uma primeira migração de povos aparentados aos atuais aborígines australianos e melanésios, depois suplantada pelos indígenas, não se sustenta já faz vários anos.

O DNA de alguns dos mais antigos habitantes do Brasil indica que, apesar do formato peculiar de seu crânio, eles pertencem basicamente a um ramo dos ancestrais dos ameríndios, aqueles que deixaram a Sibéria há talvez uns 20 mil anos e cruzaram o estreito de Bering rumo ao Alasca. O parentesco que têm com australo-melanésios é modesto, provavelmente resultado do processo complexo de dispersão da nossa espécie pela Ásia. Não houve nenhum confronto épico entre "negros" e "índios" nesse passado.

Quanto à chegada da família linguística tupi-guarani ao nosso litoral e regiões adjacentes, ainda estamos muito longe de compreender os detalhes do que aconteceu. Mas os dados arqueológicos e genéticos estão longe de apontar simples substituição de um povo por outro. Antes do avanço tupi-guarani, as populações dos sambaquis eram geneticamente diversas dependendo da região do litoral, e seus descendentes parecem ter se misturado aos recém-chegados. Quanto à ilha de Marajó, ainda não há dados que expliquem porque sua elaborada cerâmica deixou de ser produzida alguns séculos antes de Cabral —e, por ora, não há sinal algum de um declínio violento.

Mesmo que isso mude no futuro, é preciso que esse tipo de argumento seja exposto como o absurdo que é —de novo, apenas uma versão da fábula do lobo e do cordeiro. Seria bem menos feio se os senadores e seus financiadores no "ogronegócio" nacional falassem a verdade: "Queremos essas terras porque queremos continuar ganhando dinheiro sem limite algum, ora bolas. Se cem Terras houvesse, cem Terras não bastariam para saciar a nossa gula". Algo me diz que ninguém ali é macho o suficiente para admitir isso. E Terra só existe uma.

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