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Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

Como é assistir a um jogo da liga saudita no estádio

Recente onda de contratações milionárias não é uma onda nem é recente; campeonato saudita é de língua portuguesa

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O que deixa os torcedores do Al-Ittihad mais orgulhosos do que a recente contratação do francês Karim Benzema, aclamado como o melhor jogador do planeta? A equipe saudita é mais antiga do que a própria Arábia Saudita. O clube nasceu em 1927, em Jeddah, a metrópole no Mar Vermelho. O país foi unificado e fundado apenas em 1932. Já havia torcedores dos tigres de ouro antes de haver sauditas.

A recente contratação de megaestrelas para o campeonato saudita fez os radares da ética esportiva soar. De acordo com a Deloitte, esta temporada a Liga Saudita Pro adquiriu 94 jogadores estrangeiros, incluindo 37 jogadores das cinco maiores ligas de futebol da Europa, o que corresponde a um investimento de US$ 952 milhões (R$ 4,778 bilhões).

O jogador francês Karim Benzema em jogo na Arábia Saudita - AFP

Os críticos têm esbravejado, na mesma faixa de decibéis da torcida organizada do Al-Ittihad, que o governo saudita está usando a sua pujança financeira para açucarar a sua imagem global. Se o mundo gosta de futebol, então os sauditas querem trazer o futebol para a Arábia Saudita. Os chineses tentaram o mesmo na década passada. Há muitos anos que os americanos também tentam criar uma cultura futebolística no país.

É uma visão que não espelha a realidade cultural do país. Tal como a maioria dos países europeus e latino-americanos, mas contrariamente a chineses e norte-americanos. há mais de setenta anos que o futebol é o desporto com maior número de seguidores na Arábia Saudita. Os dois principais clubes de Jeddah (Al-Ittihad e Al-Ahli) e de Riyadh (Al-Hilal, e Al-Nassr) mantêm uma rivalidade histórica comparável ao Real Madrid x Barcelona ou Corinthians x Palmeiras. Cada um tem milhões de torcedores.

É difícil encontrar um saudita que não torça por um clube desde criança. Há programas públicos para ajudar a diminuir as tensões entre as torcidas organizadas. O rito de assistir a jogos em casa é um pretexto social para os membros intergeracionais de uma família conviverem semanalmente, enquanto comem tâmaras e kabsa. O primeiro apito do árbitro é uma espécie de adhan. A Arábia Saudita é, literalmente, a meca do futebol entre os países do Golfo.

(1x0, "és bonito, bonito, és inteligente, inteligente", canta a torcida organizada do Al-Ittihad no jogo há poucos dias contra o Al-Hazm para a liga saudita de futebol.)

A partida aconteceu num estádio de 27.000 lugares no extremo sul da cidade porque a casa do Al-Ittihad, o moderno Cidade dos Esportes Rei Abdullah com mais do dobro da capacidade, está sendo preparado para acolher a Mundial de Clubes da Fifa de 2023, em dezembro. O Al-Ittihad, vencedor do último campeonato saudita, jogará em casa.

Ir a um estádio na Arábia Saudita é uma experiência idêntica a assistir um jogo na Europa ou no Brasil. Os preços são idênticos (no jogo do Al-Ittihad variavam entre R$ 40 e R$ 550; o ingresso mais caro dá direito a um jantar no intervalo e a um lounge VIP) e podem ser facilmente comprados online. A maioria dos estádios é moderna. As torcidas gritam 90 minutos até à disfonia. Comparado com a Europa, o nível de segurança é aparentemente idêntico, é quase como ir ao cinema.

Mas há algumas diferenças. A maioria das pessoas é muito jovem. 63% da população saudita tem menos de 30 anos e esse perfil demográfico é visível no estádio. Até onde a minha miopia permitia ver, estava rodeado de adolescentes e crianças com os respetivos pais. Veem-se várias mulheres, até trabalhando como segurança do estádio, mas certamente menos do que em estádios europeus.

A proibição da presença de mulheres em estádios só foi banida em 2018. Para enfrentar o calor desértico, os jogos começam às 21h e o árbitro pode interromper o jogo para uma pausa de vários minutos para os jogadores se refrescarem. E há muito menos faltas. Durante o aquecimento, uma mão cheia de jogadores árabes cruzou o meio de campo adversário para cumprimentarem individualmente os adversários. Algumas horas antes do jogo, coincidindo com a última reza do dia (isha), veem-se dezenas de pessoas estendendo tapetes e rezando na rua e nas bancadas em direção à Caaba em Meca. Sim, há diferenças.

(1x1, "Jeddah, Al-Ittihad e Mar Vermelho. Nós somos os donos da cidade. Eu não consigo me imaginar torcendo por outro clube", cantam os torcedores na ala norte.)

A recente onda de contratações de jogadores não é uma onda nem é recente. Antes da chegada de Cristiano Ronaldo (Al Nassr), Benzema (Al-Ittihad), Neymar (Al-Hilal), Sadio Mané (Al Nassr), Jordan Henderson (Al Ettifaq) ou Firmino (Al Ahli), já tinham ingressado no futebol saudita vencedores da copa do mundo como os brasileiros Rivellino, Bebeto e Denilson. O titular da seleção brasileira tricampeã mundial na Copa do Mundo Fifa de 1970, marcou 39 golos pelo Al-Hilal e venceu a liga saudita. O tunisiano Tariq Dhiab, melhor jogador africano em 1977, jogou pelo Al-Ahli. Os sauditas de meia-idade também se recordam do búlgaro Hristo Stoichkov (Al-Nassr), do meia italiano Robert Donadoni (Al-Ittihad) e do vencedor da liga italiana Christian Wilhelmsson (Al-Hilal). Os mais antigos chamaram-me a atenção para os jogos de exibição de Pelé em 1973 e de Maradona em 1987. E para Didi, um dos maiores jogadores de sempre do futebol brasileiro, que treinou o Al-Ahli nas décadas de 70 e 80.

(2x1, "ash tariii baaruum caidê darcari", canta a torcida enquanto o torcedor que me servia de tradutor foi ao banheiro.)

De lá para cá, a principal novidade é que a promoção do desporto é uma peça importante na Visão 2030, o masterplan do rei Salman e do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MBS) para reconstruírem o país, apresentado em 2016. É uma estratégia de longo prazo que se tornou a bússola de bolso dos sauditas, indicando-lhes o caminho a seguir. É difícil apresentar a Visão 2030 a uma audiência estrangeira. Parece um Plano Quinquenal soviético, mas neste houve participação ativa de vários espectros da sociedade.

Poderia ser mais uma política engavetável, mas as dimensões econômicas, sociais, ambientais e culturais da Visão 2030 estão estruturadas em políticas setoriais e desdobráveis em milhares de métricas que são diariamente monitorizadas. A Visão cria condições para a diversificação da economia saudita, atualmente muito dependente do petróleo (cerca de 40% do PIB em 2022).

O desporto é visto como um pilar econômico, demográfico e até de saúde pública. Até 2030 estima-se que o setor de entretenimento, onde está integrado o futebol, possa responder por 6% do PIB. Como a obesidade é uma epidemia nacional, o futebol ajuda a incentivar práticas regulares de exercício físico.

E os jovens sauditas, a maioria da população, precisam de manter a conexão com a monarquia e a família reinante. As mudanças profundas que estão acontecendo no país desde 2017, têm alterado a ordem social e aberto espaços incomuns de livre arbítrio individual. Sem a força totalitária da lei sharia e a polícia religiosa mutaween para organizar as massas, o Estado procura instrumentos alternativos, que variam entre a maior vigilância ao entretenimento, para manter a população controlada e saciada.

Para o fundo soberano da Arábia Saudita, o PIF, investir em clubes locais é um bom negócio. O fundo injetou bilhões e tornou-se controlador do Al Ahli, Al Ittihad, Al Hilal e Al Nassr. Os velhos torcedores dos tradicionais clubes sauditas reagiram positivamente porque o capital fresco permite cauterizar a degradação esportiva e de governança que alguns destes clubes estavam enfrentando. Apesar destes investimentos, a liga saudita está longe de ser a mais rentável. Se o futebol é um negócio, os campeonatos que geram mais receitas continuam sendo o inglês (Premier League), o espanhol (La Liga), o alemão (Bundesliga), o italiano (Serie A) e o francês (Ligue 1). A liga saudita tem um grande investidor que é proprietário de quatro clubes, mas a liga inglesa tem 12 dos seus times detidos por bilionários, a maioria estrangeiros, com um patrimônio agregado de quase US$ 100 bilhões (R$ 501,8 bilhões).

Apesar das receitas ainda serem comparativamente baixas, do ponto de vista financeiro o investimento está começando a produzir frutos. A presença de torcedores nos estádios registrou um crescimento de quase 150% e o faturamento oriundo dos direitos de transmissão irá quadruplicar durante a temporada 2023/2024. Será possível assistir futebol saudita em 130 países (dados Gulfbusiness.com). O objetivo do PIF é promover a ascensão da liga saudita à 5ª maior do mundo, revela-me uma fonte no governo saudita próxima a MBS.

Investimentos também estão sendo feitos em infraestrutura. O Ministério dos Esportes da Arábia Saudita lançou recentemente um programa de US$ 2,7 bilhões para construir e reformar instalações esportivas, incluindo estádios e campos de treinamento, ao longo dos próximos cinco anos. Será dado também apoio financeiro à criação de novos 50 novos clubes esportivos em diferentes cidades do Reino. Este esforço culminará com a realização da Copa do Mundo de 2034 —o anúncio oficial da Fifa será feito nos próximos meses.

Se a qualidade esportiva da liga saudita dependesse totalmente da contratação das recentes megaestrelas futebolísticas, poderíamos assumir que os clubes onde elas jogam teriam disparado para o topo da liga, como aconteceu com o Inter Miami de Leo Messi. Mas não é o caso. Os atuais colocados em 3º e 4º lugar (Al Taawon e Al Fateh), à frente dos times de Firmino, Benzema, N’Golo Kanté e Romarinho, não receberam injeção de capital do PIF.

Qualquer negócio precisa de talentos para gerar e administrar valor. Cada vez mais o campeonato saudita é um campeonato da língua portuguesa. Quase todos os times têm jogadores brasileiros (cerca de 30 jogam na liga) e muitos contam também com portugueses, como Rúben Neves (Al-Hilal) Otávio (Al-Nassr) ou Jota (Al-Ittihad). Entre os treinadores, Nuno Espírito Santo (Al-Ittihad), Luis Castro (ex-Botafogo e Al-Nassr), Pedro Emanuel (Al-Khaleej), Jorge Mendonça (Al-Okhdood) e Jorge Jesus (ex-Flamengo e Al-Hilal) são portugueses. Aqui ao meu lado na bancada, os torcedores pedem-me ajuda para gritarem frases de incentivo e palavrões aos jogadores e ao treinador "na língua do Ronaldo".

Se no Brasil achamos que o campeonato saudita é só para jogadores em fim de carreira, na Arábia Saudita começa-se a acreditar que a liga nacional poderá ser um trampolim para as maiores ligas europeias. Liquidez, infraestrutura e história, por ordem crescente, não faltam. O Al-Ittihad foi fundado uma década antes da primeira edição do Campeonato Brasileiro de Futebol em 1937.

(Resultado final: 2-2, o treinador Nuno Espírito Santo é apupado em direção ao balneário. A torcida continua cantando mesmo com o estádio já quase vazio. O Al-Ittihad caiu para o 6º lugar.)

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