Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Rodrigo Tavares
Descrição de chapéu Copa do Mundo feminina

Copa do mundo feminina reforça segregação de mulheres no esporte

Segregação por gênero foi abolida gradualmente no último século em todas as áreas, com exceção do esporte

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Antes de ser aprovada em 1827, a primeira grande lei educacional do Brasil foi discutida na Câmara e no Senado. Concluíram os senadores que os meninos e meninas teriam que estudar separados e ter currículos diferentes.

"O seu uso de razão [das meninas] é mui pouco desenvolvido para poderem entender e praticar operações ulteriores e mais difíceis de aritmética e geometria. Estou convencido de que é vão lutar contra a natureza", declarou na altura o Visconde de Cayru.

No último século, têm sido abolidas, uma a uma, as leis que possibilitam a segregação por gênero, em todos os domínios públicos e privados. As nossas narrativas têm enfatizado a paridade de gênero.

O presidente Lula, acompanhado da primeira-dama Janja Lula da Silva e do presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues (de camisa azul), visita a seleção brasileira feminina antes do treino de reconhecimento de gramado que o time realiza no Estádio Mané Garrincha, em Brasília - Pedro Ladeira - 1º.jul.2023/Folhapress

A exceção é o esporte. Normalizamos a segregação de sexos baseado em argumentos anatómicos e fisiológicos comparativos que conduzem à diferenciação no desempenho.

Se os homens têm algumas vantagens físicas cientificamente comprovadas –mais massa muscular total, menos gordura corporal, maior número de glóbulos vermelhos, possibilitando maior capacidade de transporte de oxigênio, corações e pulmões com maior volumetria, maiores índices de testosterona– então a bifurcação entre homens e mulheres é justificável em atividades físicas em que se medalha a proeminência e a exclusividade.

A partir de 20 de julho, acompanharemos a Copa do Mundo de futebol feminino realizada na Austrália e na Nova Zelândia.

Torceremos pela seleção brasileira de Marta, Geyse e Kerolin. Trataremos as jogadoras por "meninas" para mostrar nosso afeto paternal e desculparemos os remates desajeitados com incentivos hierárquicos. Na busca do inédito título mundial, esqueceremos os elementos segregadores do espetáculo.

Quem critica a compartimentação de gênero no esporte geralmente apresenta dois argumentos. O primeiro alerta que existem diferentes maneiras de definir o sexo biológico (usando como critérios gônadas, órgãos genitais internos e externos, cromossomos ou hormônios). Sem fronteiras rígidas, o sexo biológico é mais bem representado por uma escala do que por uma dicotomia.

O segundo indica que a segregação produz mais segregação. Com menor público e menos atenção da mídia, o esporte feminino é descapitalizado de recursos financeiros e materiais, impedindo a sua profissionalização e sofisticação. Não há nenhuma jogadora de futebol em um clube de elite que tenha acesso às mesmas condições materiais de treino que um jogador de futebol no mesmo patamar.

Enquanto o desempenho de um atleta já foi cartografado cientificamente sob todos os prismas possíveis para maximizar o seu rendimento competitivo, o de uma atleta mantém-se subestudado.

Pouco sabemos sobre as vantagens ou desvantagens dos ciclos menstruais, do parto e da amamentação ou do uso de pílula anticoncepcional. Ou sobre as melhores práticas de nutrição para atletas mulheres.

Muitos dos equipamentos são desadequados para a morfologia feminina. A Nike apresentou as primeiras chuteiras para homens em 1971, mas desenhadas especificamente para mulheres serão estreadas apenas na Copa do Mundo de 2023.

Há outros argumentos que deveríamos levar em conta. Ainda que a superioridade genética masculina só se verifique em esportes que demandam força e pujança muscular, como o atletismo, onde há uma diferença de desempenho média de 10-12% entre os homens de elite e as mulheres de elite, a segregação mantém-se em vários outros esportes onde esses atributos não são determinantes.

Nas olimpíadas, porque há separação de gênero no tiro esportivo ou no tiro com arco? Sendo as peças de madeira e não de ósmio ou de chumbo, por que ainda existe o campeonato mundial feminino de xadrez?

A segregação leva também à sexualização, objetificação e estigmatização sociais, reduzindo homens e mulheres a categorizações predeterminadas.

Por que, nas olimpíadas, ainda existem várias modalidades exclusivamente femininas, como nado artístico ou ginástica rítmica, cimentando-se a ideia de que a elegância ou a suavidade são características das mulheres?

Por que os uniformes de atletas femininas em algumas modalidades são mais curtos e mais apertados comparativamente aos dois homens (veja-se o caso do vôlei)? A misoginia nos esportes é por vezes subtil, assumindo a forma de microagressões, de sexismo benevolente ou linguagem apequenante.

Para baralhar o preconceito, a superioridade é inversa em algumas modalidades.

As mulheres têm melhor capacidade para administrar a glicose (usada como energia), têm mais adiponectina (hormônio que regula o metabolismo da gordura) e maior concentração de ácidos graxos e triglicerídeos intramusculares. Isto significa terem mais resistência.

Em ultramaratonas, corridas que podem chegar a mais de 300 kms, o desempenho de mulheres é muitas vezes superior aos dos homens. Maggie Guterl, Pam Reed, Amelia Boone, Courtney Dauwalter venceram várias provas mistas para atletas de elite. Desde 2016 que a australiana Mina Guli tem corrido 200 maratonas por ano, ou cem em cem dias seguidos, para chamar a atenção para a crescente crise global da água.

No entanto, o mais grave é continuarmos definindo excelência e regulando expetativas de acordo com uma visão masculina do esporte. O nosso referencial de avaliação, quando assistimos uma modalidade feminina, continua sendo a forma específica como esse esporte é praticado pelos homens.

Vejamos o futebol. As mulheres praticam-no de forma diferente. Há mais tiros livres, duelos, passes e menos faltas. Os homens privilegiam o contato físico, a velocidade ou a força do remate, mas a nossa forma de assistirmos é inclinada para os cromossomas XY.

A tendência será, espera-se, para que as especificidades anatômicas e fisiológicas de homens e mulheres sejam complementadas em equipes mistas. A segregação de gênero no estádio, como na sala de aula até há umas décadas, deverá ser ultrapassada e a características biológicas diluídas.

Uma boa iniciativa seria equilibrarmos as visões na cobertura jornalística da Copa de 2023. Quantos narradores, comentaristas, apresentadores e jornalistas serão homens? Quantos serão mulheres?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.