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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Quando o cardápio inclui fezes

O que uma história escatológica do século 19 nos ensina sobre o presente

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Há 50 anos, o médico mineiro Pedro Nava estreou tardiamente –logo ia completar 70– como memorialista, lançando o primeiro livro de uma série que se tornaria um ponto alto do gênero no país: "Baú de ossos" (Companhia das Letras).

Mais do que pela data redonda, a obra-prima de Nava me vem à lembrança por incluir um escatológico caso de família que, datado do Segundo Reinado, joga luzes sobre o mar de merda –"merda viva", diria o memorialista– em que Bolsonaro mergulhou o Brasil.

A história tem como protagonista uma megera da família paterna do autor, uma dona Irifila, casada com o comendador Iriclérico Narbal Pamplona. Sim, a graça quase inverossímil do caso começa pelos nomes.

Homem usa água em privada, nos EUA - Callaghan O'Hare - 19.fev.2021/Reuters

O casal oferecia um contraste marcante. Enquanto Iriclérico era amigo de comes e bebes, jogos de salão e boa conversa, Irifila era o cão. "Era contra os namoros, contra o riso, contra as festas, contra as cantigas, contra as danças, contra o álcool, contra o fumo, contra o jogo", conta Nava.

Um dia, Irifila se encheu das rodinhas de carteado, guloseimas, charutos e prosa que Iriclérico tinha o hábito de promover em casa uma vez por semana. Advertiu o marido de que não queria mais saber daquilo, mas o comendador, com patriarcal distração, não lhe deu ouvidos. E chegou a hora da vingança.

Iriclérico recebia naquele dia ninguém menos que o visconde de Ouro Preto. O mais ilustre e poderoso de seus amigos era também padrinho de um de seus filhos. Irifila caprichou no serviço.

Após se esmerar na enumeração das gostosuras que a dona da casa mandou servir em bandejas de prata recém-polidas, Nava passa então ao prato principal:

"E no meio da maior bandeja, a mais alta compoteira com o doce do dia –aparecendo todo escuro e lustroso, através das facetas do cristal grosso, de um pardo saboroso como o da banana mole, da pasta de caju, do colchão de passas com ameixas-pretas, do cascão de goiaba com rapadura."

Iriclérico estava numa felicidade contagiante. Aí vem o golpe de mestre de Nava, quer dizer, de Irifila. "O comendador resplandecente destampou a compoteira: estava cheia, até as bordas, de merda viva! Nunca ninguém, jamais, ousara coisa igual."

Tomado de um choro convulsivo, "tremendo da cabeça aos pés, lívido da dor esquisita que lhe atravessava o peito, o estômago, e banhado dum suor de agonia", Iriclérico nunca se recuperou da cacetada. Até morrer, em 1896, não recebeu mais ninguém em casa. A vitória de Irifila foi completa.

O poder sinistro da armadilha que a megera montara para o marido tem raízes fundas, imemoriais –as mesmas que tornam tabuísmos, ou seja, palavrões, uma série de termos banais com os quais nos referimos a funções fisiológicas igualmente banais. Mas não em público!

Não era para aquela montanha de cagalhões estar ali, na mesa do comendador, numa elegante vasilha de cristal. Ao ser destampada com despreocupação, a piscina de barro instaurava violentamente uma dimensão de loucura, de pesadelo. Era evidente que alguém capaz de conceber tal coisa não recuaria diante de nada –nem do mais hediondo dos crimes.

E o Brasil dos últimos três anos com isso? "Dia sim, dia não", entre golden showers e "caguei para a CPI", entre internações espetaculosas por problemas intestinais e o hábito de falar merda, o presidente tornou sua retórica e seus atos um festival de escatologia. O fedor é nauseabundo. Que 2022 seja o ano de dar descarga.

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