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É jornalista e médica veterinária, com mestrado e residência pela Universidade de São Paulo.

Vivemos epidemia de sonhos pós-Covid-19

Professora de Harvard vê padrões semelhantes aos observados após 11 de setembro

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Naquela época, meu filho, a gente entrava nos apartamentos e nas casas direto pela sala de estar! Acredita?

Para chegar ao banheiro, a gente passava pela sala, cumprimentava a família toda, brincava com o cachorro, às vezes até jantava. Tinha gente que deitava no sofá e cochilava com a roupa do trabalho mesmo, assistindo televisão.

Só depois a gente tomava banho. E levava a roupa suja nas mãos, sem luva, para um cesto, onde ela ficava por alguns dias, até ele ficar cheio e ir tudo para a máquina de lavar.

Ansiedade leva a sonhos mais surreais do que os sonhos médios da população - carol_anne/Adobe stock

Ninguém entrava em casa por essas câmaras de troca de roupa. Imagina!!! Entrar pela câmara, jogar roupas e sapatos em um tubo de lavagem automática e passar direto para o banho! Se alguém sugerisse essa sequência arquitetônica ia ser tachado de louco.

Ninguém imaginava uma casa assim: câmara de lavagem-banheiro-quarto e só depois chegar à sala! E não poder voltar a esse banheiro, então, porque a porta nem abre de dentro para fora?! Área suja? Isso só existia em hospital.

A gente entrava em casa pela sala e ia para onde quisesse, todas as portas abriam. E, de verdade, também só tomava banho se quisesse.

Mas isso faz tempo, foi em 2020, antes da Grande Quarentena. De lá pra cá, o vírus mudou tudo: a moda, os hábitos e a arquitetura das casas.

Antes, meu filho, a gente encontrava um amigo na rua, abraçava e dava beijo. Beijo! Em algumas regiões do país eram três beijos. Essa história de só dar uma abaixadinha de cabeça era coisa de oriental, coisa fria... Quem diria.

E as máscaras, meu filho. Ninguém tinha uma para cada tipo de roupa, não. Elas só eram usadas em hospitais ou naqueles lugares com muita poeira ou com produtos tóxicos (e, olhe lá...). Nas ruas, nem pensar!

A moda naquela época era o batom —o tubinho de cera colorido que dá tom aos lábios e hoje quase nem se encontra mais. Hummm.... os vermelhos eram os sensuais. E as jovens usavam muito mais piercings no nariz do que na sobrancelha. Foi só depois da moda das máscaras que apareceu essa variedade de cílios postiços e de enfeites para a testa.

É, meu filho... A gente dividia latinha de cerveja, tomava refrigerante no mesmo canudo e, no Carnaval, encostava no suor dos outros. Eram outros tempos.

Acordei... no meio da história que eu contava ao meu neto (eu não tenho filhos). Eu estava bem velhinha, o rosto enrugado e os cabelos brancos presos em um coque. Mas era tudo muito real.

A pandemia invadiu o meu sono: escancarou o medo da finitude, as incertezas e a angústia do tempo passando. Mas, nessa viagem, não estou sozinha.

A psicóloga Deirdre Barrett, professora da Harvard Medical School e ex-presidente da Associação Internacional de Estudos dos Sonhos, criou em 23 de março um questionário online para saber como a Covid-19 está impactando os nossos sonhos. Já recebeu 2.148 respostas, com mais de 5.000 relatos.

“Ainda não fiz a estatística, mas o número de metáforas para esse perigo invisível é impressionante”, disse ela à Folha. “São dezenas de sonhos com insetos de todos os tipos e os mais variados desastres naturais.”

Barrett afirma que a ansiedade é o fio condutor desses relatos, que são, em geral, mais surreais do que os sonhos médios da população. Um padrão, segundo ela, que também foi visto logo após os ataques terroristas de 11 de setembro.

“Qualquer grande mudança de vida tende a chacoalhar os nossos sonhos e torná-los mais frequentes e mais vívidos. E a situação do confinamento em casa é uma grande mudança que estamos experimentando coletivamente”, diz Barrett. “Além disso, o tempo de sono é um dos principais fatores que impactam o número de sonhos que temos e o realismo deles. E muitas pessoas que costumavam ser privadas de sono podem estar se recuperando agora.”

Há um certo consenso entre especialistas que estamos vivendo uma epidemia de sonhos: sem tantos afazeres, estamos dormindo mais e tendo mais ciclos completos de sono —incluindo a fase REM, onde os sonhos acontecem. Daí por que estaríamos sonhando mais.

Por outro lado, estaríamos nos lembrando mais claramente dos sonhos porque estamos dormindo pior: o estresse e as incertezas que decorrem da pandemia acionam nossos mecanismos de luta e fuga e nos fazem acordar com mais frequência —e a lembrança do sonho acontece, exatamente, quando ele é interrompido pelo despertar.

Nos relatos recebidos por Barrett há desde sonhos bastante explícitos, como o da mulher que se vê diagnosticada com Covid-19 e recebe uma injeção letal, até as metáforas mais bizarras, que incluem ataque de gafanhoto, massacre com revólver gigante e vacas que explodem, contaminando tudo.

Dos 2.148 questionários recebidos por Barrett, 177 foram preenchidos por profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à pandemia e 290 por pessoas com sintomas de Covid-19. Os outros —a maioria— vivem, como eu, o medo.

Segundo Barrett, “há uma grande diferença entre a ansiedade surreal —refletida nos sonhos do público em geral— e os pesadelos horríveis e reais dos profissionais da saúde”.

“Individualmente”, diz a pesquisadora, “os sonhos podem trazer à tona emoções que naquele momento não são conscientes, por exemplo, por medo de entrarmos em contato com elas. Mas, para uma sociedade ou uma categoria inteira, olhar para uma coleção de sonhos pode nos dizer muito sobre o inconsciente emocional coletivo e pode nos indicar formas de lidar com ele no futuro. Os sonhos são o resultado do nosso cérebro funcionando em outro estado bioquímico [com ativação de áreas emocionais] e podem ser um complemento muito útil para a nossa abordagem linear, lógica e racional dessas pessoas.”

Para Barrett, se na nossa antiga normalidade ouvir o sonho do outro era muitas vezes um saco, na pandemia essa conversa pode se tornar mais agradável e até nos ajudar a neutralizar um pouco o estresse. “É reconfortante saber que estamos sonhando coisas semelhantes. Não estamos sozinhos”, diz ela.

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