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Medo

Eu sou a barata voadora, o avião que decola e aterrissa

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Fui convidada para participar do Festival de Literário Internacional de Óbidos, em Portugal. O tema deste ano é medo, e achei coerente que lembrassem de mim.

O meu livro “Depois a Louca Sou Eu”, que vendeu muito bem no Brasil (“estamos em um momento ótimo para tirar dinheiro de maluco”, segundo um psiquiatra amigo), há pouco tempo foi lançado pela editora portuguesa Tinta da China e discorre, justa e repetitivamente, sobre síndrome do pânico. 

Comecei então a refletir sobre meus maiores medos e fobias. Passei boa parte da vida apavorada com a ideia da morte dos meus pais.

Por várias vezes os observei, sem que percebessem, e ao concluir que não durariam para sempre já começava a verter um tsunami por toda a face. Isso “melhorou” depois que minha filha nasceu e eu voltei toda a minha angústia para a sua existência.

Nunca mais parei, nem por um segundo, de sentir um princípio de horror na boca do estômago só de saber que, por ser humana como todos nós, ela pode se machucar ou pegar doenças. Eu passo o dia repetindo para mim mesma que está tudo bem. “Olha ela lá, brincando, feliz.” E igualmente fico me dizendo que não está tudo bem. “Olha ela lá, brincando, que perigo, vai cair; aquela criança ao lado tá catarrenta; não bota isso na boca que tá sujo; ai, esse pé na água fria; esse vento bem no cabelo molhado dela.”

Barata - Divulgação

Também sempre sofri de uma fobia bem extrema relacionada ao quesito vômito. Passei mais de 20 anos sem conseguir regurgitar até em situações extremas, tipo comida estragada.

Na gravidez achei que tinha curado esse problema. Eu vomitava só de lembrar que existia ovo. Garrei um horror tão tremendo que substituí um pavor pelo outro.

Só de pensar no alimento ovo, em seu formato oval, em sua textura de ovo e em sua cor de ovo, eu tinha vontade de vomitar por mil anos seguidos. Só de lembrar que as pessoas comiam ovos mexidos e fritos e cozidos e que os melhores restaurantes serviam de entrada “ovos perfeitos”, eu queria desistir para sempre da vida.

Aquela loja que vende coisas bonitas e caras chamada Ovo, sabe? Passei sem querer em frente, de carro, e tive que parar para golfar. Assim que a Rita nasceu eu voltei a comprar e a comer ovos de todos os tipos e a ter medo de vomitar.

Quando fui convidada a falar na Flip, em Paraty, fiquei tão assustada que no dia acordei sem voz. Depois, quando caí em certo ostracismo literário por estar ocupada com um bebê maravilhoso e outros trabalhos (não exatamente artísticos-autorais, mas que pagam a estadia desse serzinho incrível no mundo), não pude terminar meu próximo livro e me achei uma bosta.

Foi uma delícia! Senti de novo o receio de não dar certo, e que gostoso! O receio de não dar certo é infinitamente mais conhecido, familiar e quentinho do que o horror de nem sequer cogitar começar a ter qualquer sucesso. 

Eu costumava dizer que tenho medo de tudo que não controlo. Barata que voa, avião que voa (parado e em solo atemorizam bem menos), mosquitos, bactérias, vírus, frente fria, fundo do mar, o correr dos anos e meu cartão de crédito.

Também entram nessa lista todas as pessoas, pois não sei o que pensam, e por fim eu mesma, pois jamais comandei o que se passa em minha cabeça. 

Eu sou a barata voadora. Eu sou o avião que decola e aterrissa. Ter medo do que a gente não controla, ora pois, é ter medo da porra toda.

Se eu de fato parar para pensar, estive com medo todos os dias e o tempo todo. Se eu parar para analisar, nunca tive medo de nada. O meu grande pavor, hoje em dia, é de quem diz a palavra “completamente” ou nela acredita.

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