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Descrição de chapéu É Coisa Fina

Sobre amar um homem inculto

Esta obra de Annie Ernaux é sobre a solidão de se tornar mais culto e reconhecido do que as pessoas que lhe deram base

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O Lugar

Avaliação:
  • Preço: R$ 49,90
  • Autoria: Annie Ernaux
  • Editora: Fósforo (72 págs.)

Ao tentar conter a algazarra de seu filho pequeno na primeira classe de um trem, para que o barulho não incomode os que ali viajam, pensa: “agora sou mesmo uma burguesa […] tarde demais”.

Assim começa o périplo intelectual da professora que se tornou escritora consagrada na França (em 2017, recebeu o prêmio Marguerite Yourcenar pelo conjunto da sua obra). Ernaux precisa negar o ambiente de sua primeira formação para pertencer a lugares mais eruditos e refinados e, ao mesmo tempo, se angustia imensamente com isso: “Me submeti às vontades do mundo em que vivo, que se esforça para que todos se esqueçam das lembranças de uma vida com hábitos mais simples, como se fossem uma coisa de mau gosto”.

Nesta autossociobiografia, ela rememora, investiga e estuda a vida paterna (e a classe social de onde veio), misturando intimidade com sociologia e, décadas depois, servindo de inspiração para autores como Didier Eribon e Édouard Louis (o preferido desta colunista).

Ao ler Proust ou Mauriac, Annie constata perplexa que seus romances eram contemporâneos da infância de seu pai, que vivia em um ambiente medieval: quando as crianças tinham vermes, costuravam, do lado de dentro da camisa, uma bolsinha cheia de alho perto de seus umbigos.

A partir da morte do seu pai, nasce a necessidade de dar uma forma possível e definitiva para aquele corpo que começa a se desfigurar (ficaram mais de 48 horas velando o defunto no quarto da casa).

Portanto esta obra seria, a priori, a história desse senhor “meio comerciante, meio operário”, tão orgulhoso de seus trejeitos e vocabulário quanto preocupado em não passar vergonha (ou envergonhar a filha) ao expor seus modos e carências científicas.

Para narrar tais memórias, Annie abre mão de recursos de estilo que a distanciariam ainda mais do pai: “Só há pouco percebi que escrever o romance é impossível. Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa ‘cativante’ ou ‘comovente’. Vou recolher as falas, os gestos, os gostos do meu pai, os fatos mais marcantes de sua vida, todos os indícios objetivos de uma existência que também compartilhei”.

E assim começa o seu relato que, justamente por tamanha simplicidade, justamente por não traduzir nada além do que a palavra já quer e pode informar, justamente por ser um sacrifício amoroso de uma artista que precisa se provar distante de uma primeira criação iletrada, é mais literatura do que boa parte das invenções estilísticas com as quais perdemos nosso tempo ao tentar ler um bom livro.

Esta é uma obra sobre a solidão (e a traição, a culpa, a dor, o imperecível sentimento de não pertencimento) de se tornar mais culto e reconhecido socialmente do que as pessoas que lhe deram a base de tudo. É também sobre se “reencontrar com a herança” que Ernaux teve que deixar de fora ao escolher pertencer a um universo burguês.

No bolso do pai já morto, a autora encontra dobrado um papel com o nome dela aprovado, em segundo lugar, para a universidade. Ao final, conclui: “Talvez seu maior orgulho, ou até mesmo aquilo que justificava a sua existência: que eu fizesse parte de um mundo que o desprezou”.

"O Lugar", de Annie Ernaux, publicado pela editora Fósforo - Reprodução

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