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Eu gosto de você

Um homem maduro, branco e de média estatura me aceitou

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Na última terça-feira (20) aconteceu algo muito notável em minha vida. Um homem maduro, branco e de média estatura me aceitou. Ele atravessou o salão de um bar, com passos cambaleantes, cutucou meu ombro, me tirou do ambiente afetivo e quentinho em que eu estava —cercada do melhor que a noite paulistana pode oferecer no quesito poetas libidinosos e lésbicas perversas, todos me dizendo o quão elegante eu estava naquela noite— e me revelou, baixinho, para que ninguém mais presenciasse tamanho vexame: "Eu gosto de você!".

Respondi: "Claro, também gosto de você". Ele insistia, tapando a lateral do rosto para que nem seus lábios pudessem ser lidos: "Você não está entendendo, eu gosto muito do que... [pausa dramática] você escreve". "Sim, eu também adorei seu último livro." "Não, Tati, é sério, você sabe [cara de nojo], você fala de você mesma, escreve pra televisão, faz podcasts, gosta de dinheiro, expõe rusgas com gente meio "peloamordedeus" nas redes sociais, isso é outro mundo pra mim, sabe? Então as pessoas falam mal. Eu só queria dizer que eu te defendo porque eu te leio e gosto de você."

Porra! Então estava tudo resolvido. Na hora eu pude ver a nave da Xuxa chegando, o Dengue dançando, o Praga assoprando bolinhas de sabão. O fio desencapado que sou hoje amalgamado ao fio desencapado que eu era na infância e eu explodindo no céu porque UM HOMEM GOSTA DE MIM.

Naquele instante eu lamentei demais ter jantado apenas uma saladinha. Se eu tivesse comido o suficiente para cagar uma medalha, eu jamais perderia essa chance. O homem maduro, branco e de média estatura que atravessa o salão de um bar para SALVAR essa figura deprimente chamada "mulher escritora que sujou sua aura falando de si mesma, escrevendo pra televisão, fazendo podcasts e gostando de dinheiro" merecia que a donzela em perigo pudesse lhe confeccionar um brasão ali mesmo, bordando a alcunha REI DA PORRA TODA em um pedaço cortado da flacidez dos seus grandes lábios.

Ele, escritor de verdade, que figura sempre entre os dez mais alguma coisa de alguma coisa, finalmente tinha me enxergado e agora meu ânus receberia o carimbo neon do Playcenter. Por favor, garota, quatro apoios no chão, para que eu possa lhe estuchar o carimbo fosforescente que dá direito a uma voltinha no trem fantasma dos aceitos. Os escritores reais. Zumbis do crediário, sempre caindo trôpegos pelos cantos, a fim de respeitar sem amor uma boa vagina progressista, em quartinhos que precisam ser simples, em computadores que precisam ser ensebados.

Mas a vida é tão complexa que fui ouvindo aquela ladainha do grande salvador, querendo estar numa plateia feminista contemplando aos risos o seu monólogo, querendo filmá-lo para incluir em um documentário chamado: "Pronto. Pode entrar. Eu gosto de você. Assinado: homem". E essa era a crônica. Pronto. Lacrei. Fim. Mas a vida, como disse antes, é complexa. E terminei a noite afeiçoadíssima por aquele tipo e seu amontoado de frases alcoolizadas, lançadas a mim por condescendência, por arrogância, porque ele também gosta de dinheiro (mas talvez seja amor platônico), porque senhores mais inteligentes que bonitos sabem que para atiçar uma histérica nada melhor do que um "eu sei o que falam sobre você", mas também por, "vamos ter fé no homem", uma boa dose de proteção e benquerença. Saí das redes sociais e voltei para meu livro naquela mesma noite.

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