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Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Depressão e ansiedade; doenças silenciosas que enchem bares nas periferias

Em seu não dizer reside o tanto que aguentaram de boca fechada

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No fundo do bar, quando os encarava, não entendia o porquê de aquele par de olhos me atravessar. Era como se eu não existisse. Miravam no que estava atrás de mim: uma parede azulejada em azul-banheiro, mesa de bilhar, caixa de cerveja, calçada, uma saída, o que fosse. Tudo, menos eu. De repente, soltavam alguma frase enrolada. Tentava decifrá-la pela entonação. Bravo, confuso, triste, eufórico, mas nunca em paz. Isso eu conseguia detectar desde pequeno: a inquietude que não retumba.

Nos botecos em que meu pai me levou, muito vi. Com o passar dos anos, as fotos penduradas feito roupas no varal de minha memória foram revelando realidades perceptíveis apenas quando sentimos da vida a dor adulta. Observando-os, aqueles homens que preenchiam o espaço de um quartinho com cheiro de azedo e urina me faziam indagar por que estavam ali, todos os dias, sempre opacos. No fundo do bar, sem entender o que presenciava, convivia com a ausência daquela que viria a ser entendida anos depois por saúde mental —quase sempre inalcançável no fundo do ser periférico.

Amigos em bar de São Paulo - Eduardo Knapp/Folha Imagem

Do dono por trás do balcão ao Magrão de escleras amareladas entre os talhos no rosto, havia silêncio na hora de pedir o pileque. Percebo hoje que mesmo com a barulheira de discussão qualquer sobre futebol ou música, fiado ou troco de bala, abraço ou esbarrão, bico ou patrão, ainda se tratava de um lugar silente. Calavam sobre a família, sobre como se sentiam, sobre o que desejavam sentir. Imperava a distração, o desvio, a chance mínima de ver sem olhar.

Se houvesse desabafo, catarse seria daquelas de virar garrafa no chão, rachar cabeça no asfalto e terminar em solidão no sereno de uma noite sem casa para voltar. Fora dali, vi cada um deles tentando viver. Eram muito do que há nas pessoas que não tiveram acesso aos cuidados com a mente. Sem nomear e tratar dos males chamados de "doenças de rico", foram esses homens retratos de gerações marcadas por alcoolismo sem o glamour servido às elites artísticas. Não eram escritores, dramaturgos, acadêmicos. Pedreiros, mecânicos, desempregados, "chão de fábrica", eletricista ou só um tiozinho da vila. Privilégio do repouso, não tinham. Tratamento em clínica? Sem condições. Terapia era utopia. Formou-se assim a ideia do homem que aguenta sem nem ao menos saber que não aguenta mais.

A depressão era "tratada" num ciclo vicioso que se resumia a: conseguir um trabalho de esforço excessivo e com cotidianos casos de assédio moral para, então, desenvolver uma profunda —e patológica— angústia misturada à ansiedade devido ao vencimento das contas, sustento da casa, falta de alternativas, pouco ou nenhum estudo, cobrança, bebida, alívio, bar, fundo do copo, nada no bolso, casamento no poço, a mulher sofre, sofre mais, sofre pelos dois, aguenta pelos dois e vira vítima, até que, finalmente, vê-se no espelho sem olhar para si. Atravessa-se.

"Seu mal é sono", "Está triste? Arranje um emprego que melhora", "É frescura isso aí". O pobre nunca teve o devido acesso à qualidade de saúde mental. Ainda não tem. Quando ando por minha quebrada, percebo os bares lotados de silêncio.

Homens novos, idosos, majoritariamente homens, majoritariamente não brancos, majoritariamente pobres. Em seu não dizer reside o tanto que aguentaram de boca fechada. Aberta para o gole, às vezes durante um berro de socorro, quase nunca para falar de si e tratar do que lhes fere o fundo do espírito.

Entendo muitos pais, inclusive o meu, que chegavam em casa tarde, com cheiro forte de álcool, cabeça baixa, iam dormir sem dizer nada. Fossem dizer algo, era sempre reclamação, implicância, quem sabe a única forma de dizer: não aguento mais. Aguentou, às custas de si mesmo.

Os bares de que me recordo eram silenciosos. Nem tudo se resumia a doenças psíquicas, acredito eu. Porém, os sinais que hoje consigo interpretar indicavam que as vidas daqueles homens carregavam complexidades para além do estereotipado e preconceituoso "este aí é vagabundo, só vive na cachaça". No fundo, há muito mais. Sempre há.

Copo com cachaça em mesa de bar - De Leonidas / Adobe stock

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