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Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Descrição de chapéu machismo LGBTQIA+

Amigo de mulher: da misoginia e homofobia à amizade como pacto de sobrevivência

Quando nos agrediam, defendíamo-nos; se ardia, assoprávamo-nos

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Quando era agredido com palavras, socos ou sacos de lixo arremessados, não queria saber de Deus ou de amor. Era medo e ódio de quem agredia naquele dia e nos outros. Na certeza do amanhã inevitável. Quem quer levantar para ser nocauteado? Quantos quilômetros infinitos tinha o caminho até a escola do bairro, à padaria, ao mercadinho, ao bar? Todo lugar deixava exposto ao mundo dos outros quem sempre seria outsider. Até o dia em que se encontra alguém tão outsider quanto. Encontra mulher.

Ela parecia calejada já antes de completar 12 anos. Não vacilava. Sabia quando era melhor ficar quieta para depois disparar contra quem fosse palavras amargas. Um pouco mais velha do que eu. Ainda assim éramos duas crianças. Encontramo-nos primeiro na calçada, depois pelas ruas e esquinas. Andávamos o dia todo. Nossos inimigos nem sempre eram os mesmos, mas a ameaça sim. Ela era menina que tinha que ser mulher, eu era menino que não viraria homem. Eu era amigo de mulher.

Motivos de sarro, juntos fomos unidos por nossa desgraça comum: nós mesmos. A garota em um mundo para garotos. Eu fui tudo, menos o tipo de moleque a quem o mundo se dava. Sem vergonha, ríamos, a sós, a dois, de nervoso. Ela me contava sobre como a tratavam na escola, em casa, no busão, mas focava muito nos planos e sonhos. Buscava saídas de emergência.

Estádio do Canindé, da Associação Portuguesa de Desportos - Zanone Fraissat - 6.jan.20/Folhapress

Mesmo assim, ela gostava de um, de outro, do mesmo de novo e sofria com todos. Queria ser bem tratada, escolher e ser escolhida. Tinha alguma chance de amar. Eu, naquele contexto, não, mas era no imaginário que ela me pegava pela mão e dizia: aqui você pode querer também.

Quando nos agrediam, defendíamo-nos. Se ardia, assoprávamo-nos. Ela acolhia, ouvia, via e entendia o quanto custaria para ser quem éramos, mulher e amigo de mulher —o não homem. A liberdade de ser tem preço alto a depender da posição em que te pariram. Se de pé com grilhões ou deitada com berço de ouro.

Caíamos no chão às gargalhadas e era com a bocarra cheia de dentes, apagados entre um e outro, que o som estridente virava rosnado, aviso para eles de que a mordida viria. A gente ria juntos, como se lambêssemos a ferida um do outro. Amizade, sobrevivência, companheirismo e proceder. A menina e o amigo de menina. Alcateia de dois.

Pouco importava para ela de quem eu gostava. Queria saber era dos meus desafetos, de quem me fazia sofrer. Mais importante era nos protegermos da ameaça comum e conseguir sonhar até que o amanhã chegasse com alguma pista sobre como seria nosso futuro. Este era o ponto: a dois, eu e ela, conseguíamos imaginar futuros. Vivos —o que era mais importante.

Com o passar dos anos, ela se tornou várias. Outros nomes, outras origens e o mesmo pacto de sobrevivência. Quem me ouviu, falou, quem se revoltou com as violências que sofri e se levantou comigo contra elas foi mulher primeiro.

Mulher do começo ao fim, mulher que se propôs a olhar, acolher, ajudar; mulher porque via em mim uma fagulha do que nela sempre incendiou, a ânsia de ser para aquilo que nasceu: ela mesma. Observou com seus olhos amolados a brutalidade dos que não toleravam nossa dança estranha, a que só se faz se o outro também dançar. Foi mulher que chegou perto e perguntou se estava tudo bem. E eu respondia "tudo indo". Assim, elas foram comigo. Amigas, irmãs, várias, hoje e sempre, que, pela necessidade de sobreviverem e de fazer com que outros sobrevivessem, foram as únicas e primeiras a me tirarem para dançar.


No emaranhado de relações tecidas nas periferias, na tensão de cada nó que ata e desata pessoas, o combate à misoginia e homofobia chega, muitas vezes, antes mesmo da militância. Há, antes do conhecimento sobre conceitos e estruturas de poder, o pacto pela vida plena, como no relato aqui feito. Há a convicção de que algo está errado com quem faz do outro depósito de mágoa e comete tais violências.

Encontrei mulher, fui e continuo amigo de mulher. Quando perguntei a ela se estava bem, respondeu "tudo indo". Juntos dançamos.

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