Antes mesmo de ter um homem, eu tive a mim.
Eu tive a liberdade de ser naturalmente a recusa de todas as expectativas paridas antes do meu nascer mudo, sem choro, sem roteiro, sem surpresa, sem festa.
Antes mesmo de beijar um homem, eu vivi os melhores momentos de minha prematura vida ao lado das cores, dos anéis, das roupas curtas que libertavam meu corpo e o convidavam a dançar com as tempestades, no meio da rua, sem medo de raio, sem medo de chuva.
Antes mesmo de me apaixonar por um homem, eu admirei meus gestos, minha delicadeza, minha brutalidade, meu amor pelas plantas e animais, minha habilidade no futebol, meu jeito de falar, meu olhar ao calar, minhas pernas cruzadas, o andar nas pontas dos pés, minha velocidade, minhas unhas carentes de cor, meu gosto por sereias e Comandos em Ação.
Antes mesmo de dizer a um homem que eu o amava, disse a mim, com um léxico mirrado de moleque, ao deitar na cama e perceber que a diferença crescia por dentro como os joelhos que esticavam o corpo para fora e levavam a cabeça às alturas do pré-adulto mundo. Eu tive que me ter entre os braços, entrelaçando-me em cuidado, cautela, silêncio, resistência e foco na missão, atividade na laje, correria, em viver minha tal diversidade para sobreviver a partir dela.
Antes mesmo de conhecer um homem que quisesse me conhecer, caminhei comigo por vias que nunca me foram indicadas, mapeadas ou familiares. Podia ir e vir com o âmago camuflado pela certeza de que ninguém me acessaria feito a estrada desviante onde eu, liberto, deslumbrava o interior de uma mente a pulsar no ritmo das batidas do caos.
Conheci a desordem que, na inocência dos que são sexualizados antes mesmo dos desejos se tornarem quereres, contrariava os vícios batizados de costumes. Sabiam tudo sobre como eu seria, menos sobre como eu me libertei tão cedo deles.
Antes mesmo de desejar o corpo do homem, satisfiz-me com a liberdade de me conhecer e ser exatamente do jeito que sabia que era: um desconhecido com quem amanhecia, apenas. Que se olhava e se observava, compreendia-se e se consolava. Liberto e ligeiro, desviado das realidades encarceradoras.
Antes mesmo de ser um homem, eu fui livre. Tornei-me um mistério para os outros homens. A incógnita incômoda na voz interrogativa a gerar dúvidas, o andar que atormenta o corredor do ônibus, a ginga que irrita por parecer um balé que não se encaixa naquele corpo desenhado para se fazer talhado e não esculpido.
Antes mesmo de gostar de homem, eu gostei de ser livre. Fui o primeiro homem que amei —o primeiro que a mim amou.
Porque eu me dei a liberdade.
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