Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".
Até o momento, todos os meses apresentaram casos explícitos de racismo
A aleatoriedade e a seletividade, naturalmente antônimas, podem vir a habitar um ser específico
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Quando entrou em campo, avistou o boneco com seu número de jogador. Enforcado estava, como a "fruta estranha" que Billie Holiday cantou para os seus e suas pendurados num ontem desamanhado. Janeiro de 2023, uma réplica do corpo negro no qual, para alguns, deve permanecer —sem tocar o chão com os pés— flutuando nas arquibancadas sem vida, tal qual um fantoche, escravo das mãos de quem o controla.
Súbito calor queimou o couro da cabeça. Sob o teto de concreto, nenhum sol para se responsabilizar. Percebeu, o homem, o serralheiro, o adulto de 47 anos, que alguém havia apagado um cigarro em sua cabeça. Após o susto decorrente da violência explícita, o oculto se revelaria nas palavras escritas por dedos que decidiram se fazer bocas odiosas. Preto, por isso merecia ser queimado. Preto, por isso indesejado, odiado. Era fevereiro de 2023.
Há pais e mães que sofrem de saudade quando mandam suas crianças para a escola. Há os que sintam medo além de saudade. No retorno, perpetua a sensação de ter que interrogar sua cria para saber se ela não está escondendo alguma violência que tenha sofrido apenas por ser quem é. Cansa, quando os olhos finalmente se firmam naquela figura ainda em formação, descobrindo cotidianamente do que o mundo é feito, o coração. "Você não quer ser meu escravo? Deveria ser meu pet." Se ao entrar pelos ouvidos noviços há dor, recair sobre os exaustos de uma mãe negra no mundo racista ultrapassa os limites da sensibilidade. Em março foi assim.
Presença incômoda. O jeito de andar, olhar, o passear das pernas sem pressa, tudo pronto para acender o alerta do segurança. Se ficar tempo demais parada olhando as prateleiras sem pegar nada, é suspeita. Veta-se o direito ao tempo próprio, à dúvida, à escolha demorada do que deseja ou não consumir. Ter que ver se não está sendo vista. Conferir se sua insegurança não atiçou o segurança. A mulher em seu corpo negro é oprimida e seguida pelas vielas de um mercado, pelas esquinas que juntam prateleiras de alimentos com a dos produtos de limpeza. Parece rua, parece que o ar livre prende cada preta vivendo seu tempo próprio. Foi no mês de abril que ela se sentiu perseguida. E foi.
A aleatoriedade e a seletividade, naturalmente antônimas, podem vir a habitar um ser específico. Do nada, ele, o ser específico, é o único a ser chamado para a revista. Caminhou até o local onde operavam investigadores de um crime não anunciado por fatos, mas por fabulações, e ficou. A estrada, curta em lonjura, mas longa em simbolismos, fez-se visível até para os que viraram os olhos. Pelo corredor, novamente, sem pressa o negro se levantou do assento e, sozinho, novamente, retirado foi do transporte para ser "verificado". Qualquer um seria, mas foi ele, o negro, o especificado, aquele da raça cujo aleatório sempre encontra motivos, quase nunca razão. Com pés firmes, ele foi. Seletivo com as palavras, valeu-se de si para não cair na desconfiança alheia. Seu plano era voar em maio, mesmo que tentassem segurá-lo
Nas massas, escreveu Freud, o indivíduo reduz sua inteligência ao permitir que o grupo pense por ele e, concomitantemente, sente-se agregado pela maioria a ponto de não mais reprimir pensamentos que, enquanto sozinho, escondia. Campo de futebol, escola, boate, supermercado, avião, tanto faz. Se o todo permite, cada um que o integra faz sem medo.
Ao caminhar na feira, ouviu alguém comparar a textura de seu cabelo crespo à de uma alface. "Duro", bateu em seus ouvidos. "Risos", permitiu-se a maioria ali presente no mês de junho.
"Macaco". Julho, no restaurante, mulheres negras são atacadas pela performance decadente e criminosa de pessoas decadentes e criminosas. Agosto, enquanto se exercitava num parque, ouviu que todos os seus deveriam ser mortos. Setembro, o futebol retornou e com ele um "cala boca, neguinha" direcionado à quilombola. Agora, em outubro, o segurança desta vez foi a vítima. "Macaco", "crioulo". E em novembro? O de sempre.
Ao longo do ano, o racismo não passa batido. Bate.
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