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Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Descrição de chapéu BETs no Brasil

Sem regulamentação efetiva, apostas online são caixas de Pandora nas periferias

Regras deveriam considerar o impacto social, cultural e psicológico das bets

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Silenciosamente, entrega-se para cada par de mãos vazias uma caixa. Quem a recebe não consegue perceber de onde veio. Parece surgir do nada, na sutileza da fissura que marca a transição do momento de mais agudo desespero para o de branda apatia. Pesa bastante, tal objeto, como se dentro dele a promessa do ter, do conquistar, do desfrutar, do progredir — dos verbos cujas ações resultarão em novos dias —, fizesse morada.

Jovem menor de idade manuseia sites de apostas em celular, em Brasília. - Folhapress

Chega fechada. Assim permanece até que a angústia encontre na curiosidade o imperativo que faz os sofridos se lançarem ao desconhecido. No fundo, o medo, ainda na sua fase primitiva de cautela, alerta sobre a desgraça, mas não é levado em consideração. O que fica, entre as mãos vazias, é o completo desejo de apostar o que nem se tem naquilo que tanto anseia possuir: uma chance. Uma única chance.

A caixa não chega sozinha. Junto dela, as Pandoras — belas armadilhas de um destino já traçado, de um plano já desenhado — sempre bem recebidas nas casas dos que pouco têm. A elas é oferecido o que tiver sobrado como migalhas esfareladas na despensa. Uma vez instaladas, confortáveis e com livre acesso às informações sobre as vidas dos curiosos, permitem que seja finalmente encerrada a tortuosa condição do não saber. Cada um abre seu receptáculo. Nele, de fato, o tudo, entretanto: também o nada. A única chance é, na verdade, uma aposta.

Traga o mito para a realidade. Coloque-o para jogo, dê-lhe alguma utilidade prática. Faça valer seus simbolismos. Pois quem consegue ter algum tempo e energia para observar o mundo ao seu redor, enxerga como as desditas são espalhadas sempre, e primeiro, na morada dos desafortunados.

Hoje, nas periferias, uma caixa foi aberta, a das apostas online. De todos os males que já estão sendo liberados — vício, endividamento, fraudes, roubo de dados pessoais, falta de restrições eficazes que impeçam crianças e jovens de "jogar", perda real tratada como "azar casual", ilusório ganho como "renda extra" —, fico com o de Nietzsche, em "Humano, demasiado humano". A esperança, que por pouco também não foi liberada, permaneceu na caixa como expectativa de dias melhores ou prolongamento do suplício real que é o de viver em situação de vulnerabilidade e, por isso, vulnerável aos males todos.

Esperançoso demais, esse ser, para compreender que outro mito lhe custa a concreta possibilidade de não piorar ainda mais sua condição. O mito da prosperidade instantânea. Vendido, inclusive, em cursos, palestras, ativações e treinamentos de coachs que se enxergam como Zeus de si mesmos e tentam, por meio de artimanhas, tirar do povo o pouco que o fogo de Prometeu trouxe de possibilidade. De oportunidade. Vê-se benefícios sociais, como o Bolsa Família, sendo usados para saciar a compulsão por apostas. Traga o mito para a realidade, coloque-o para jogo, dê-lhe alguma utilidade prática e, então, possível será observar o que é farsa e o que é fato.

Os indispensáveis processos de regulamentação devem incluir — com igual relevância e destaque que ganham as questões jurídicas e financeiras — determinações que tratem dos impactos sociais, culturais e psicológicos do que pode ser (e já se mostra de tal maneira) mais uma adição para os tão subtraídos. Quando ando de ônibus e, de relance, vejo nas telas de celulares os aplicativos que brilham como os antigos caça-níqueis, só que, diferentemente deles, não mais escondidos em fundos de botecos, angustia-me pensar que ali a esperança se finge de "força para continuar".

Maior é o pesar quando sei de crianças e jovens já se afundando nestes jogos, influenciados por quem deles não depende, em absoluto, para fazer fortuna. Sem surpresa, nas quebradas tudo é liberado antes de uma regulamentação sólida que consiga mensurar os efeitos possíveis. Um laboratório em cada casa, uma cobaia a cada aposta.

A esperança no fundo da caixa promete o fim dos males a partir da sua mais profunda essência: a inação da espera. O devaneio da sorte.

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