Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Futebol de várzea, com trave de gol feita de chinelo, é o amor concreto pelo esporte

Entre amistosos e campeonatos, muitos foram influenciados pelas histórias de dentro e de fora dos campinhos

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De longe, eu e meu irmão, que já estávamos de pé logo cedo, podíamos ouvir os primeiros batuques anunciando o começo de mais um domingo no final dos anos 1990.

O dia em questão tinha vários significados: macarrão com molho e frango, os amigos que trabalhavam na feira e que chegariam para brincar só à tarde, carros sendo lavados na calçada, e pai em casa. Os tais batuques também o despertavam, e o som abafado das batidas passavam o recado a ele: dia de futebol de várzea.

Entre amistosos, festivais e campeonatos, muitas crianças —como eu e meu irmão— tiveram em sua criação a influência das tantas histórias contidas dentro e fora das quatro linhas dos campinhos de barro. Independentemente de sonhar ou não em ser jogador profissional, adquiríamos a cada partida alguma lição e tirávamos dela um ensinamento fundamental. É jogando que se aprende.

Jefferson é ex-jogador profissional e cresceu na favela de Divinéia, onde fica o time
O ex-jogador de futebol profissional Jefferson, que cresceu na favela de Divinéia, onde fica o time de várzea Inajar de Souza, no bairro da Vila Nova Cachoeirinha, zona norte de São Paulo; a equipe lançou em 2021 um uniforme contra o racismo, o preconceito de gênero e sexualidade, e pela inclusão de pessoas cadeirantes e com deficiência - Juh na Várzea/Jucinara Lima/Divulgação

Havia vezes em que não dizíamos nada. Dois pivetes tiravam par ou ímpar e o que vencesse começaria a escolher seu time. Não tínhamos muito o que dizer, só sabíamos que era dia e hora de jogo.

O dono da bola variava, às vezes chegava com uma de leite leve demais e que não aguentava um toque nos cacos de vidro sobre os muros a enquadrar a rua apertada. Em outros episódios, trazia o presente recém-ganhado —uma “capotão” ou “coquinho” tão dura que deixava o peito do pé roxo.

Seja como for, ele precisava de nós tanto quanto nós da bola dele. Jogávamos por horas. Meu irmão era bom demais. Eu era bom também, mas não tanto quanto ele. Geralmente, ficávamos separados para evitar “time apelão”. Quando tinha “contra” entre quarteirões, aí sim nos juntavam.

O "fut" com os mais velhos da rua também ensinava muito sobre ter postura, saber lidar com o instinto de competição para que ele não nos dominasse, controlar a vontade de impressionar a torcida que assistia nas calçadas, e entender que, naquele momento, fosse dono da bola ou não, o desrespeito com os mais experientes era inadmissível. Um caminho sem volta, ou um carrinho bem dado.

A disciplina vinha das mais diversas formas de fazer a bola rolar: “gol a gol”, “três dentro, três fora”, “bobinho” ou “dois toques: bobo”, “saiô, maiô”, “dois na linha, um no gol” etc. Cada quebrada tinha seus códigos para os tipos de "fut" de rua e fazia da linguagem de jogo um idioma tão vivo quanto o apego pelo esporte amador. Se não gritasse “ladrão!”, pronto, perdia a bola.

A cultura do futebol de várzea sempre terá importante lugar na formação dos tantos jovens nascidos e criados nas periferias. Isso porque promove, entre outros aspectos sociais, o senso de comunidade e valorização dos bairros enquanto tal.

Quando meu pai nos levava para assistir aos jogos da Copa Kaiser —iniciada em 1995, na cidade de São Paulo—, firmava conosco um compromisso para além do entretenimento com os filhos. Ele nos apresentava o seu mundo, seu referencial, sua comunidade, sua identidade e cultura. Pai jogou até depois dos 60 anos e sua carreira no futebol de várzea eu pude ver antes mesmo de ir assisti-lo jogar. Quando bem pequeno, passava as pontas dos dedos nas suas muitas medalhas e tentava mordiscar os troféus.

Domingo, 1995, chegávamos eu, pai, irmão, no “campo”, o CDM (Clube Desportivo Municipal), o “morro” no qual escalávamos para ver a partida do alto. As torcidas estavam com suas faixas e uniformes, os morteiros prontos, cheiro de churrasco, cheiro de cerveja, cheiro de rivalidade, cheio de gente, era assim. Entre uma porção de moela ou torresminho, um salgadinho para os menores e refrigerante no saquinho plástico.

Começava a disputa, pai desaparecia mesmo sem sair do lugar. Ficava hipnotizado, atento, crítico, nervoso e, a cada vez que uma pausa ocorria, olhava para nós e via dois seres divididos entre observar a bola indo de um lado para o outro e caçar grilos na grama. Na hora do almoço, era voltar para casa, comer e nos separarmos de pai. Era hora de ele voltar ao bar dele, enquanto eu e o caçula íamos fazer na rua o nosso futebol arte de várzea. Trave de gol feita de chinelo, sola do pé feita de asfalto.

A importância do futebol de várzea ultrapassa as linhas de meu texto, evidentemente. Por isso, inclusive, não teria como abordar o assunto sem mencionar um documentário fundamental para manter a memória desta cultura viva: “Várzea – A Bola Rolada na Beira do Coração”, assinado e dirigido por Akins Kintê, poeta, escritor, e multifacetado artista cuja contribuição para a cultura afro-brasileira já pode ser considerada como legado.

O filme foi lançado em 2010 e retratou a várzea como espaço onde a arte do futebol se manteve viva, resistente, mas nunca estagnada. Desde depoimentos de organizadores, jogadores e treinados, até a presença forte de mulheres nas torcidas e em postos de liderança comunitária, ali se registrou o que aqui sempre foi realidade: a várzea é o amor concreto pelo futebol.

Ainda aguardo um domingo futuro que me desperte com as batidas distantes —e fortes— de quem tem entrosamento com o time, com a bola, e com sua gente.

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