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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

A psicanálise em questão

Por que tanta gente inventou de se tornar psicanalista?

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As obras completas de Freud estão acessíveis na internet e abundam canais de YouTube e podcasts –alguns de excelente qualidade– nos quais são debatidos os conceitos fundamentais da psicanálise. O tema interessa a advogados, a professores, a médicos, a pais, enfim, qualquer pessoa que queira conhecer um dos marcos do pensamento ocidental. Existem grandes pensadores da psicanálise que nunca atuaram na clínica e cumprem inestimável função refletindo sobre a teoria e, certamente, sobre suas próprias análises. Esse conhecimento, no entanto, não fará dessas pessoas psicanalistas.

Freud deixa claro em suas "Conferências Introdutórias (1916-1917)" que não há como avançar na teoria sem ter uma experiência direta com o próprio inconsciente. Bom, então se eu estudasse a teoria e fizesse análise, me tornaria psicanalista?

Sinto muito, mas a resposta ainda é não. Amor e conhecimento profundo da teoria psicanalítica não fazem de ninguém analista, tampouco anos de análise o farão.

Réplica do divã que Sigmund Freud utilizava em seu consultório - Rogério Albuquerque - 7.out.2000/Folhapress

No entanto, alguns sujeitos, ao longo de sua própria análise, reconhecem o desejo singular de escutar o inconsciente, agora no lugar de analistas. Essa é uma afirmação tão radical quanto possa parecer: é a análise que marca a possibilidade da prática analítica. Mas como sabê-lo de antemão, antes de começar a estudar/se analisar? Não é possível. A vontade consciente –que se diferencia do desejo inconsciente– de se tornar psicanalista nos leva a fazer uma aposta no estudo e na análise, mas essa última poderá revelar motivações bem distantes da função de um analista. Motivações que deveriam demover o aspirante a analista de seguir com sua empreitada.

O desejo de analista é contingencial e, diria Lacan, aberrante, pois implica em dedicar-se à tarefa solitária e peculiar de lidar com aquilo que descartamos o tempo todo: as produções do inconsciente. Não tem nada a ver com o estudo da psicologia (confusão recorrente).

Lacan faz a pergunta que não quer calar: por que raios alguém quereria ser psicanalista? Ouvir horas a fio o sofrimento alheio sem responder às demandas do sujeito, sem aconselhar, palpitar, elogiar, criticar e ser objeto de amor e ódio imerecidos ou de queixas de excesso ou falta de compaixão, afetos transferidos das relações originais. Quando se tornou tão atraente assim ocupar esse lugar? Ofício que leva décadas para ser bem remunerado e não tem horário para acabar, pois o inconsciente não dorme.

Aparecer na mídia falando sobre psicanálise ou dar aulas não tem nada a ver com a prática de analista, que se desenrola na mais absoluta solidão. Diria mesmo que essas atividades visam compensar o isolamento, pois são o oposto do lugar do analista, cuja fala se restringe a ajudar o paciente a se escutar.

Se o sujeito assume eticamente seu desejo de se tornar analista de outros, é indispensável que se engaje em uma ou mais instituições psicanalíticas, nas quais se estuda a obra de Freud e de pós-freudianos nas quais tenha supervisões regulares. Acima de tudo, o psicanalista se responsabiliza por sua escolha, sem se escorar num título burocrático decorrente de tarefas cumpridas. O tempo da formação não é dado pela duração de nenhum curso teórico, tampouco haverá um diploma para psicanalistas. Ignorar isso é uma impostura, pois é ignorar a própria lógica que rege a psicanálise: a escuta do inconsciente.

Mais uma vez testemunhamos instituições pleiteando aplicar a lógica universitária na formação de analistas, lógica na qual a burocracia autoriza a prática.

Usurpam o termo psicanálise a serviço da mercantilização.

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