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Érico Andrade

Democratizar a psicanálise

Instrumento teórico de crítica ao neoliberalismo, sua prática é bem capitalista

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Érico Andrade

Filósofo, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e psicanalista em formação

Poucas pessoas no Brasil podem usar o valor de um carro ou de um apartamento para enveredar na carreira de psicanalista. O alto custo da formação, que envolve o pagamento da mensalidade da sociedade ou associação de psicanálise, da análise pessoal e da supervisão, desenha um perfil de psicanalista que talvez esteja de fato mais próximo da Viena de Freud do que das comunidades e favelas do Brasil.

Durante toda a presença da psicanálise no Brasil se fez muito pouco para alterar esse círculo vicioso: paga-se muito para a formação em psicanálise e compensa-se cobrando muito nas sessões. Alguns psicanalistas midiáticos cobram um valor para cada sessão muito maior do que um salário mínimo.

Isso torna a psicanálise muito cara e, por conseguinte, elitista. A sua democratização só ocorre nos corredores das universidades onde a psicanálise é usada como teoria social em diferentes domínios das humanidades. E, não raramente, é usada como crítica ao neoliberalismo, mesmo sendo a sua prática clínica uma importante aliada do neoliberalismo —não apenas quando a clínica se centra apenas no indivíduo, como se as patologias humanas pudessem ser resolvidas apenas na esfera individual, mas também quando funciona de acordo com a lógica do mercado no que diz respeito aos valores cobrados. Quanto maior a demanda por um analista, maior o preço de sua sessão.

Assim, a psicanálise é usada como instrumento teórico de crítica ao neoliberalismo, mas a sua prática é bem capitalista. Aqui não se trata de uma ambivalência, mas de uma contradição. Parece que Marco Antonio Coutinho Jorge, em artigo nesta Folha ("Bacharelado em psicanálise é aberração", 12/2), não percebeu que a psicanálise não irá se tornar "empresarial" com uma eventual graduação pela simples razão que em algum sentido ela já é empresarial, visto que serve apenas à parte abastada da população. A questão é: como mudar este quadro?

Só percebo uma forma. As sociedades devem realizar, como instituição, projetos de difusão e formação em psicanálise dirigidos às pessoas que têm interesse, mas que não podem arcar com os custos da formação. É preciso converter esses valores exorbitantes da formação, pagos apenas por quem tem na sua clientela empresários, juízes, procuradores etc., num benefício público por meio do fomento a uma formação social —voltada para quem não é herdeiro nem tem um capital alto para investir numa formação de qualidade.

Assim, se a ideia de uma graduação em psicanálise é questionável por várias razões, ela ao menos serve para que a comunidade psicanalítica atente que não basta ter uma clínica social (que, aliás, quase nunca existe): é preciso uma formação social. Sem isso, a psicanálise está condenada a repetir a desigualdade brasileira sem se dar conta de que parte do nosso sofrimento psíquico tem uma raiz, como ensinou o próprio Freud, na cultura.

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