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João Frayze-Pereira

Livro discute força libertária da psicanálise e interroga cultura contemporânea

Ensaios de Luiz Meyer revelam pensamento que desaloja ideias de seus lugares habituais

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João Frayze-Pereira

Psicanalista, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP

[RESUMO] Coletânea de ensaios "Navegação Inquieta" expõe a profundidade das reflexões de seu autor, Luiz Meyer, movidas por um pensamento que desaloja as ideias de seus lugares habituais e interroga radicalmente aspectos da prática psicanalítica e da cultura contemporânea.

"Navegação Inquieta", de Luiz Meyer, reúne um conjunto de ensaios escritos durante um longo tempo, contrariando a lógica da chamada sociedade do espetáculo, que privilegia não apenas a aparência em relação ao ser, mas também a brevidade dos discursos em relação ao tempo necessário para o trabalho do pensamento.

Nesse livro, como em publicações anteriores, o autor não poupa a psicanálise nem o seu contexto da interrogação radical. Nesse trajeto, confirma-se um modo de pensar que, no prefácio a um livro anterior ("Rumor na Escuta"), denominei pensamento cruel, isto é, um modo de pensar que não tem nenhuma relação com maldade ou perversão.

É uma noção encontrada em Walter Benjamin, referida à reflexão que desaloja as pessoas e ideias dos lugares costumeiros, invalida hábitos, ameaça o conforto do que parece dado, tido como certo e natural.

Capa do livro "Navegação inquieta - ensaios de psicanálise", de Luiz Meyer
Obra de Eleonore Koch - Reprodução

Seu propósito é "expressar as perspectivas nas quais o mundo revela suas fraturas para retomar a questão da atividade do sujeito como redenção, isto é, como restituição daquilo que fomos privados à nossa revelia", conforme texto que escrevi com Maria Helena Patto.

Pensamento cruel não despreza a tradição. Ao contrário, considera-a para analisá-la e propor novas ideias. Essa operação demanda tempo para se realizar.

Luiz Meyer dialoga com autores diversos —na psicanálise, na filosofia e nas ciências sociais. Entre eles, destaca-se Melanie Klein que, segundo Julia Kristeva, foi capaz de fazer da psicanálise "uma arte de cuidar da capacidade de pensar". No entanto, ela é, para muitos, uma autora incômoda, pois a perspectiva que propõe é implacável no tocante à condição humana.

Talvez pela crueldade de seu pensamento, tenha ficado à margem de certos círculos psicanalíticos, chegando a motivar um artigo de Jean Laplanche, de 1988, que, aproximando-a das figuras lendárias da bruxa ou da herege, indaga: é preciso queimar Melanie Klein?

Ao centrar fogo na pulsão de morte como aspecto crucial do ser humano, proposição feita por Freud em 1920 e, antes dele, por Sabina Spielheim em 1912, Klein aprofunda uma questão que se tornou banalizada no mundo contemporâneo: a problemática da destrutividade.

A propósito, Kristeva escreveu: "Atingida pela história dramática de nosso continente que culminou no delírio nazista, Melanie Klein não se consagrou aos aspectos políticos dessa loucura que desfigurou o século XX. Mas, se ela não se detém na análise do horror social, [...] sua análise da psicose [...] nos permite melhor precisar os mecanismos profundos que condicionam —ao lado dos acasos econômicos e partidários— a destruição do espaço psíquico e o assassinato da vida do espírito que ameaçam a era moderna/contemporânea".

Ora, Meyer considera o pensamento kleiniano não apenas para a clínica, mas também para a análise da política e da cultura. Melanie Klein, como Hannah Arendt, outra presença importante no livro, é uma insubmissa que se arrisca a pensar a morte, a agressividade, a avidez, mas também a compaixão, a generosidade, a natureza relacional e moral do ser humano.

Ambas se interessam pelo objeto e pelo vínculo, se preocupam com a destruição do pensamento que, para Arendt, é manifestação do mal, e para Klein, da psicose, rejeitando o raciocínio linear, como lembra Kristeva.

Como elas, Meyer exercita a crueldade do pensar, mas vai além de Klein, ao interrogar conceitos referidos à clínica em sua diversidade e problematizar certos dispositivos da formação psicanalítica instituída, a análise didática, assim como fenômenos sociopolíticos e estético-culturais.

Por ser uma apreensão sintética do todo, esta resenha não poderá expressar em detalhes os conteúdos analisados, como a estrutura da mente totalitária, nazista e stalinista, o chamado cinema de autor, como o filme "Melancolia", de Lars von Trier, as questões do conflito estético na escrita de um poema inspirado por William Carlos Williams e a polissemia na literatura, segundo uma interpretação sociopsicanalítica do conto "Verba Testamentária", de Machado de Assis, além da questão enigmática do corpo na psicanálise em um interessante diálogo com o psicanalista Luiz Tenório.

Mais ainda, a reflexão do autor mergulha nas relações entre memória e fantasia, mundo interno e realidade externa, metapsicologia da autoanálise e, sob um viés inovador, logo no primeiro capítulo, aborda o sonho como uma questão tanto circunscrita quanto proposta pelo sonhador.

Contudo, o livro não é só trabalho teórico-conceitual, pois em vários momentos também sensibiliza o leitor. Nesse sentido, há uma bela entrevista com o autor, realizada por um grupo de psicanalistas que, como inusitado prefácio, cria uma atmosfera original e emocionante, não somente pela particularidade da história pessoal narrada, mas porque, a certa altura, Meyer nos surpreende com uma revelação, propondo uma concepção de psicanálise mediada pela pintura.

Assim, no contexto da sua análise com Donald Meltzer, em Londres, que lhe possibilitou um conhecimento mais consistente do trabalho psicanalítico, Luiz declara que a sua atual visão desse trabalho pode ser representada por uma frase do pintor Renoir: "Ao ar livre, a gente trapaceia o tempo inteiro".

Então, escreve que os pintores impressionistas se propuseram a abandonar as regras rígidas prescritas para a pintura em ateliê, pautadas pelo realismo, classicismo e romantismo, "para ir a campo, ao ar livre, e aí se deixar infiltrar [...] pela luz natural, cambiante, descontrolada, que passou a exigir, para ser representada, uma técnica nova caracterizada pela pincelada nervosa e improvisada, e pelo uso da cor de modo impressionista" (p. 30).

Esse modo de operar, que na arte se chama estilo e no terreno psicanalítico, psicanálise implicada —termo com o qual, há décadas, defini o meu trabalho entre a psicanálise, a clínica e a arte—, é, segundo o autor (p. 246), uma tomada de posição que implica praticar a psicanálise longe das idolatrias referidas a certos autores, tidos como gurus, cujas ideias são aplicadas sem crítica a qualquer novo material, aplicação que sempre o reduz ao mesmo, confirmando a tradição.

Com isso, também é subvertida a noção de "método" na psicanálise —o que Luiz esclarece, ao discorrer sobre o "seu método de escrita" (p. 31)—, cujo pressuposto necessário, como se sabe à luz da história da filosofia, é a separação sujeito-objeto do conhecimento, exterioridade que a arte moderna rompe, a arte contemporânea destrói e a psicanálise, tal como proposta por Meyer, descarta.

Cabe ressaltar que essa posição não é opinativa, mas fundamentada, o que já se percebe no título do livro. Afinal, o que significa navegação inquieta?

Para responder, recorro ao filósofo Sérgio Cardoso, que distingue as figuras do turista e do viajante: o turista, que apenas se desloca no espaço, opõe-se ao viajante, que se transforma com o tempo do próprio percurso. Então, se ao turista o mundo é apenas espaço planejado para o deslocamento, ao viajante ele se oferece como campo aberto às transformações.

Ora, se a visão do turista é opaca, referida ao espaço metodicamente ocupado pelo eu, o olhar do viajante abre-se ao outro, isto é, ao diferente —abertura que é o próprio fundamento do tempo. Quer dizer, o viajante não opera mero ir e vir no espaço, mas uma complexa autodiferenciação como modo de existência temporal do presente.

A reflexão de Cardoso nos permite pensar que o processo implicado na viagem é análogo ao que constitui uma psicanálise, isto é, ambos são experiências, ou seja, aberturas indeterminadas à alteridade, ao porvir, que exige do viajante e do psicanalista distanciamento, não porque se deslocam entre lugares distantes, mas porque se autodiferenciam e transformam os seus mundos.

Tal distanciamento de nós para nós mesmos é exigido pelo próprio outro para que dele possamos ter experiência.

É nesse sentido que "as viagens são sempre empreitadas no tempo", como afirma Sérgio Cardoso. Navegação inquieta, portanto, como um emblema, anuncia a reflexão praticada por Luiz Meyer que, na sua juventude se tornou viajante, entre a Europa e o Brasil, realizando uma odisseia, exterior e interior, da qual o jovem médico retornou psicanalista, mais velho e mais sábio.

Nesse processo, é possível reconhecer o grau de profundidade da inquietude do autor, isto é, o momento em que a psicanálise se apresenta com uma força própria à literatura, oferecendo-nos a companhia viva de um psicanalista-poeta que trabalha em um campo entre-dois, no qual a sua experiência singular instiga a recepção implicada do leitor.

Ora, dado que a psicanálise não é instrumento de adaptação dos indivíduos ao ambiente, mas uma perspectiva para promover a transformação do que se encontra neles mentalmente fixo e instituído, o reconhecimento dessa força libertária potencializa o trabalho psicanalítico para a crítica da cultura contemporânea, cuja lógica cada vez mais banaliza o mal e ameaça destruir a possibilidade do pensamento.

É contra essa tendência maligna que, no vértice da crueldade, a psicanálise proposta neste livro se posiciona.

Navegação Inquieta: Ensaios de Psicanálise

  • Preço R$ 113 (402 págs.)
  • Autor Luiz Meyer
  • Editora Blucher
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