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Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

Sobre dois garotos

Que bom que você mudou tão pouco esse tempo todo

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Londres, janeiro de 1981. Buenos Aires, março de 2022.

No inverno gélido que ainda o pegava de surpresa, um garoto andava perto de um certo clube chamado The Marquee, tentando absorver tudo que via na capital londrina pós-punk, as caras, as roupas, os cabelos. Eventualmente as músicas.

Num verão que se despedia, outro garoto andava por Palermo Soho, numa noite de sexta-feira que começava a se animar, em torno de um clube chamado La Tangente. Cansado de uma madrugada mal dormida, a excitação era seu combustível.

Região da praça Cortázar (Palermo Soho), em Buenos Aires (Argentina) - Luisa Alcantara e Silva/Folhapress

O que aquele garoto queria em Londres era receber um pouco da energia que ele só sonhava existir a cada disco de vinil que ouvia, raridades que conseguia em magras importadoras do centro de São Paulo. O mundo, pelo menos o que importava para ele, era New Wave.

Andar por Palermo, para aquele garoto, era repetir itinerários conhecidos. Anos atrás, numa loja de discos que já não existe mais, a Miles, ele descobria novas bandas portenhas. E agora, depois de ouvir tanta coisa na sua vida, ele iria conferir de perto uma dessas descobertas.

A fome era um incômodo menor na sua perambulação pelo Soho londrino. Mesmo assim, o garoto resolveu comprar uma fatia de pizza, um luxo diante do orçamento que tinha na viagem. Com o queijo esfriando a cada passo, ele só queria que desse a hora de ele entrar no Marquee.

Cruzando a rua Thames, o outro garoto se lembrou que só tinha comido cedo, no avião que o levara a Buenos Aires. Viu um lugar que já conhecia, Chori, no número 1653. Pediu logo dois "choripáns" e saiu devorando-os pelas ruas, manchando seu rosto de maionese enquanto o Tangente não abria.

A banda que tocava no Marquee, Thompson Twins. "Lies, Lies, Lies" tocava o dia inteiro nas rádios que o garoto conseguia ouvir por lá. Poucos se lembrariam deles 40 anos depois. Mas era um show imperdível em janeiro de 1981. E era no Marquee.

Atração do Tangente, El Robot Bajo el Água. Imperdível em pleno 2022. O garoto sabia as músicas de cor, de "Ver-tiente", que o fazia chorar, a "Ich Liebe Dich", seu mantra. "Dentro de tus ojos de almendras florecerem, estrellas que titilan de alegria en mis pupilas"...

Dentro do Marquee, o show era um detalhe. O garoto estava ali, no lendário clube. E isso era o que importava. Quando os Thompson Twins entraram, foi até divertido. Mas o importante é que ele estava lá, onde sempre sonhou estar.

El Robot levou menos de meia hora para subir ao palco do Tangente. Era isso que importava. Ouvir a banda pela qual ele se apaixonou havia mais de dez anos. Ver seu ídolo Nicolás Kramer de perto. Onde sempre sonhou estar.

Tudo era novidade, o lugar, as pessoas, a música. Estar no Marquee era o que mais validava aquela viagem a Londres, que não foi exatamente pobre de outras experiências incríveis. Algo para se contar anos depois.

Havia o conforto das músicas conhecidas no show do Tangente. O garoto tinha planejado a viagem para isso. E agora ele sabia que nunca iria esquecer aquela noite. A promessa de ver El Robot, ele tinha feito a si mesmo anos atrás.

Cheio de cerveja, o garoto em Londres mal conseguiu chegar ao albergue onde estava. Mas, quando se deitou na cama simples, fechou os olhos, feliz.

O garoto de Buenos Aires foi caminhando sem pressa para seu hotel, sóbrio, mas quase sem tocar os pés no chão. Deitou-se, mas a excitação era grande.

Foi lavar o rosto e mal disfarçou a surpresa de ver no espelho do banheiro a face do garoto de Londres. E quase ao mesmo tempo um disse para o outro: "Que bom que você mudou tão pouco esse tempo todo".

Música é tudo nesse mundo da gente.

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