Siga a folha

Descrição de chapéu Lei de Cotas, 10 universidade

De universitário aos 50 a estudante de medicina, veja depoimentos de cotistas

Bolsistas negros contam sobre sua jornada e defendem políticas de permanência estudantil

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

São Paulo

Estudantes que utilizaram o sistema de cotas na primeira década da implantação da lei nº 12.711/2012 concordam que a legislação é fundamental para a entrada na universidade, mas defendem o avanço e a ampliação de políticas de permanência estudantil para todos os cotistas.

Veja abaixo o depoimento de cotistas que frequentam ou frequentaram as aulas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Unesp (Universidade Estadual de São Paulo), USP (Universidade de São Paulo) e Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)

Sem a política de permanência estudantil eu não teria terminado meu curso

Nelson Moralle

Advogado, formado na primeira turma com cotas da UFRJ, em 2018

Nelson Moralle, 60

Advogado, formado na primeira turma com cotas da UFRJ, em 2018. É coordenador nacional da Federação Nacional das Associações Quilombolas

Me tornei universitário aos 50 anos e me formei em 2018, em direito, na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). No próximo ano defenderei minha tese de mestrado, chamada "direitos autorais na cultura popular dos povos tradicionais", na mesma universidade.

Fui um dos alunos que ingressaram na UFRJ em 2013, primeiro ano da lei de cotas raciais. Fui criado em uma comunidade quilombola em São Roque (interior de SP) e fui analfabeto até os 35 anos. Mesmo sem saber ler e escrever atuava como uma das lideranças do quilombo, colaborando para a implantação do EJA (Educação de Jovens e Adultos). Lá tinha um alto índice de analfabetismo.

Nelson Moralle, 60, cotista da turma de direito de 2013 da UFRJ - Eduardo Anizelli/Folhapress

A escola mais próxima era a 27 km. Imagina andar 54 km para estudar. Diante da resistência de membros da comunidade em frequentar as aulas, decidi eu mesmo fazer a matrícula. Com o tempo, incentivado pelos professores, tirei o certificado do ensino médio.

Prestei vestibular em 2012 e, no ano seguinte, entrei na UFRJ. Não há igualdade na disputa por uma vaga com pessoas que se preparam a vida inteira. Por isso, as cotas são a maior ação afirmativa para equilibrar esse distanciamento.

Fiquei em sétimo lugar na classificação geral e, pelo sistema de cotas, na primeira colocação. Teria conseguido a vaga de qualquer forma, porém sem a política de permanência estudantil não teria finalizado o curso. A luta agora é pela permanência desses alunos nas universidades.

Morei no alojamento de estudantes, fazia as refeições no bandejão e usava o ônibus circular para me locomover. Me mudei para o Rio e não tinha ninguém para recorrer. Esse apoio foi essencial, mas é necessário ampliar essa política, porque não há vagas para todos. Hoje, tenho um escritório e atuo nas áreas civil, do consumidor e previdenciária. Parte das causas, defendo gratuitamente.

A lei já fez muita diferença, mas ainda é difícil encontrar negros na engenharia

David Allan França

Estudante de engenharia de produção na Escola Politécnica da USP

David Allan França, 23

Estudante de engenharia de produção na Escola Politécnica da USP; é o primeiro da família a entrar para a universidade

Estudei a vida inteira em escola pública e entrei com cotas raciais e sociais no curso de engenharia de produção da Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo), em 2018.

Minha formatura será no primeiro semestre de 2023. A Poli é um ambiente majoritariamente branco, é muito difícil encontrar alunos negros por aqui. Mas tenho uma percepção pessoal que, desde 2019, vem crescendo a presença de homens e mulheres negras na engenharia.

David França, 23 está no último ano de engenharia de produção da USP - Zanone Fraissat/Folhapress

Para mim, as cotas fizeram diferença e têm grande importância. É uma forma de reparar um histórico de falta de oportunidades do povo negro e reduzir a desigualdade, porque nem todos partiram do mesmo ponto.

Sou o primeiro da família a entrar para a universidade, inclusive pública, e reconheço o esforço dos meus pais para que eu pudesse estudar. A minha mãe é doméstica e tem o ensino fundamental incompleto, mas fez de tudo para que eu pudesse me dedicar apenas aos estudos.

Por ter vindo de escola pública, conheço muitas pessoas que não tiveram essa chance, tinham que trabalhar também. Por causa desse apoio familiar, pode ser que eu tivesse entrado sem as cotas, mas é difícil saber.

Moro com minha mãe. Tenho dois irmãos por parte de pai. Ele é encarregado em uma madeireira e completou o ensino fundamental. Apesar de serem separados, meus pais têm o maior orgulho de eu estar na universidade.

Minha mãe conta para todo mundo que faço engenharia. Quando fala que estudo na USP algumas pessoas ficam surpresas. E meu pai me incentiva a continuar estudando e a dar o meu melhor, mesmo com as dificuldades do curso, para conseguir me formar porque um curso de engenharia não é nem um pouco fácil.

Fiz um estágio em uma instituição bancária. Agora, pretendo me formar, procurar emprego em consultoria e no mercado financeiro, além de continuar estudando.

"Quero incentivar meus alunos a entrarem para a universidade"

Isabella Monteiro, 26

Estudante de história na Unifesp de Guarulhos (Grande SP) e professora da rede estadual de ensino

Em 2018, comecei a cursar história na Unifesp de Guarulhos (Grande SP) por meio da política de cotas. A conclusão do curso está prevista para o próximo ano. Morava em Americana (interior de São Paulo) com a minha família, mas, há quatro anos, me mudei para uma república de estudantes.

Recebo R$ 400 por mês de uma bolsa de pesquisa na universidade, valor insuficiente para me manter. Tenho um irmão que estuda medicina na Unesp de Botucatu e também entrou por cotas. Então, nossos pais fazem o que podem para nos manter estudando, sempre priorizaram isso, mostrando o quanto a educação é importante.

Isabella Monteiro, 26, que entrou na Unifesp para estudar história via cotas - Zanone Fraissat/Folhapress

No início deste ano, comecei a dar aulas na rede estadual no bairro Pimentas [periferia de Guarulhos], onde tento incentivar os alunos a não parar os estudos.

Sempre fui de escola pública e acredito nesse espaço. É hora de retribuir. Na sala de aula pergunto se querem fazer universidade e muitos acham impossível fazer um curso superior, dizem que nem tentarão. Explico sobre a lei de cotas, falo sobre as possibilidades e os incentivo a tentar.

As cotas fizeram com que mais pessoas negras entrassem para o ensino superior. Antes de entrar na Unifesp, fiz um tecnólogo de dois anos de fotografia em uma faculdade privada com bolsa do Prouni (Programa Universidade para Todos). A minha ideia é trabalhar futuramente com fotografia e história, porque acredito que, através da fotografia, também estamos contando história.

Na faculdade de fotografia eu não tinha colegas negros. Hoje, mesmo que ainda seja algo tímido, vejo mais pessoas negras nas salas e nos corredores. Faço parte da coordenação do NNUG (Núcleo Negro Unifesp Guarulhos), que acolhe e apoia os alunos negros. Sei como são importantes esses grupos, porque, desde novinha, participava com a minha mãe do coletivo O Negro, de Americana, e a luta é contínua, porque ainda há muito conservadorismo.

As cotas permitem que jovens marginalizados sonhem chegar aonde eu estou hoje

Laís Gonçalves Moreira, 23

Cursa o último semestre de medicina na Unesp, em Botucatu

Laís Gonçalves Moreira, 23

Natural de Caratinga (MG), cursa o último semestre de medicina na Unesp, em Botucatu (238 km de SP)

Vou me formar em medicina em novembro pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), em Botucatu. Apesar de enxergar avanços, ainda me sinto minoria. Já me perguntei onde estão as jovens da periferia onde eu cresci. Estar em ambientes elitizados faz com que eu não me sinta representada.

Olho para os corredores do hospital, e os funcionários da limpeza e de atendimento ao público são os que mais se parecem comigo. Não vejo chefes, médicos ou professores negros.

Pessoas pretas e pardas, indígenas e pobres são a minoria nas universidades públicas. Por isso, o sistema de cotas é uma medida temporária e eficiente em um país que presenciou mais de quatro séculos de escravidão e marginalização de grande parte da população.

Laís Gonçalves Moreira, 23, está no último ano de medicina na Unesp Botucatu - Arquivo pessoal

Essa marginalização persiste, com muitos jovens de periferia tendo que abandonar os estudos cedo para trabalhar. Se esses jovens têm acesso ao ensino superior de qualidade, eles promovem informação, há uma mudança de contextos sociais e outros tantos jovens podem sonhar para estar neste ambiente que estou hoje. Criei um canal no YouTube para dar dicas para o vestibular.

Sou de Caratinga, Minas Gerais, a mil quilômetros de Botucatu. Para me manter durante o curso, recebo um auxílio permanência estudantil da universidade no valor de R$ 400. Me senti acolhida e acredito que esse programa deva ser expandido para que mais alunos em condições difíceis possam concluir o sonho de se formar. Mesmo assim, é necessário que meus pais se esforcem para me ajudar.

Quando penso no preconceito que há em relação às cotas imagino que essas pessoas vieram de situações de privilégio e desconhecem o que o sistema propiciou.

Acredito que passamos por um retrocesso com a falta de investimento na educação e ainda estamos longe de abandonar as cotas. É preciso incentivar a educação em todos os níveis, mas especialmente a básica.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas