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Butantan usa fundação privada para driblar regras do poder público, diz Ministério Público de Contas

Em pareceres, órgão aponta falta de transparência em gastos com a vacina contra a Covid-19 e outros

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São Paulo

O caráter privado da Fundação Butantan, entidade de apoio ao Instituto Butantan, órgão público do Governo de São Paulo, ajuda a driblar exigências legais de transparência, contratação e gestão impostas à administração pública.

Essa avaliação foi expressa por três procuradores do Ministério Público de Contas (MPC) de São Paulo em diferentes pareceres de análise de contas da fundação. O mais recente deles, assinado nesta quarta (3) e obtido pela Folha, se refere a gastos feitos em 2020 para o combate ao coronavírus.

O governo João Doria (PSDB) não detalha os gastos com a produção da Coronavac, tendo como justificativa o acordo de confidencialidade com a chinesa Sinovac e o caráter privado da fundação.

O governador João Doria (PSDB) no primeiro dia de vacinação em São Paulo - Eduardo Anizelli - 17.jan.2021/Folhapress

O MPC identificou uma série de pontos que considera irregulares e apontam para uma “reforçada interdependência” entre a fundação e o instituto, o que acabaria por flexibilizar a gestão dos recursos públicos e a administração do Butantan.

“Com isso, o exercício do controle externo fica bastante prejudicado quando se trata de descobrir os custos reais de pesquisa, produção e distribuição da Coronavac”, afirma o procurador Rafael Baldo na peça.

O relatório, que analisa uma amostra dos contratos da fundação, propõe que mais compras sejam escrutinadas para que haja uma avaliação definitiva sobre sua regularidade. O julgamento final sobre o balanço da fundação cabe ao Tribunal de Contas do Estado (TCE).

“O Ministério Público de Contas não conseguiu avaliar o grau de economia na compra dos insumos e dos equipamentos necessários, muito menos o grau de eficiência na produção e na distribuição das vacinas”, afirma o documento.

Entre os problemas apontados estão a compra de 1.500 ventiladores pulmonares por R$ 176 milhões, o descumprimento da Lei de Acesso à Informação (LAI) por não atualizar e detalhar despesas no site e a contratação de 120 técnicos para a produção da vacina sem informar se seria por meio de concurso público.

A Coronavac foi a primeira vacina disponível no Brasil e a com maior número de doses oferecidas até agora. O imunizante virou tema de embate entre Doria e o presidente Jair Bolsonaro, já que o governador liderou as negociações com a Sinovac, pressionando Bolsonaro, que teve postura negacionista.

Doria chegou a anunciar gastos com a vacina de R$ 85 milhões, em junho, e US$ 90 milhões (cerca de R$ 505 milhões), em setembro, mas os valores não foram registrados no Orçamento do estado.

Segundo o governo, a despesa foi bancada pela fundação, mas não há informação pública sobre os valores em caixa. O gasto será ressarcido por meio da venda das vacinas para o Ministério da Saúde.

“Nota-se que o tempo todo a Fundação Butantan se aproveita do fato de ser entidade privada como pretexto para se esquivar das responsabilidades que possui por fazer uso, direta ou indiretamente, de recursos públicos no exercício das suas atividades”, escreveu o procurador do MPC João Paulo Giordano Fontes em parecer de novembro passado, em que recomenda ao TCE a reprovação do balanço de 2018 da fundação. O TCE ainda não realizou o julgamento.

“Apesar de alegar ser pessoa jurídica distinta e estranha ao poder público, a fundação permanece usando bens públicos, gozando de toda a notoriedade e histórico do instituto e do serviço de seus servidores; ou seja, pretende extrair o melhor dos dois regimes, ora se utilizando do patrimônio público, ora se esquivando das obrigações impostas aos entes públicos”, completa.

A falta de detalhamento nos gastos com a vacina levou os deputados estaduais José Américo (PT) e Paulo Fiorilo (PT) a ingressarem com uma representação pedindo ao Ministério Público que apure se houve ato de improbidade por parte de Doria.

Em resposta, o Butantan enviou aos deputados dez páginas assinadas pelo diretor Dimas Covas em que ele afirma que a LAI abre exceção para informações confidenciais de projetos científicos.

Em 2012, a fundação chegou a solicitar ao TCE que fosse excluída da ação de fiscalização do tribunal, mas acabou pleiteando apenas a reclassificação de fundação típica (mantida pelo poder público) para de apoio (privada, que vende serviços para entes públicos). Na prática, as regras de contratações de serviços e pessoal passam a ser mais brandas.

O caso foi julgado em novembro de 2018, quando o TCE atendeu a solicitação da fundação, apesar do parecer contrário do MPC. Para os procuradores, no entanto, isso não dá carta branca à entidade.

O parecer analisa ainda as fontes de receitas do instituto e da fundação para concluir que a fundação se encarrega da venda das vacinas, “o que caracterizaria efetiva gestão e controle das verbas do instituto pela fundação”.

As vacinas e soros do instituto são vendidas por meio de convênios assinados entre o governo federal e a fundação, que recebe a verba e, segundo o MPC, a aplica de forma mais flexível por ser uma entidade de fora da administração pública.

Em 2019, 94% das receitas da fundação vieram da venda de vacinas, ou seja, a gestão orçamentária do instituto, na prática, fica a cargo da entidade privada —o que o MPC classifica de inconcebível intimidade da fundação com os cofres do instituto.

A fundação, que não tem fins lucrativos, foi instituída em 1989 por um grupo de médicos e professores e tem como principal fonte de renda esses convênios firmados com o Ministério da Saúde. Já o instituto sobrevive de repasses da Secretaria estadual da Saúde.

O parecer do MPC afirma que, entre 2012 e 2020, o instituto recebeu R$ 1,73 bilhão do governo paulista.

Ao contrário de outros anos, em 2015 e 2016, os convênios do Ministério da Saúde foram firmados com o instituto, não com a fundação. O primeiro, então, repassou para a segunda R$ 940 milhões —embora a fundação tenha alegado não receber verba do estado ao pedir a reclassificação.

O documento mostra ainda que as verbas estaduais para o instituto foram usadas quase na totalidade para pagamento de pessoal e manutenção, sendo a média de 0,58% usada para investimentos. Já a verba destinada à fundação foi usada para aquisição de bens e contratação de serviços e obras.

Em setembro, a Folha mostrou que a gestão Doria estava usando dinheiro da Fundação Butantan que deveria ser aplicado em pesquisa e desenvolvimento no próprio instituto, segundo seu estatuto, para cobrir despesas com materiais e insumos para hospitais.

Na análise do balanço de 2018, o MPC afirmou que as contas “não se encontram em boa ordem” e elencou irregularidades como o fato de a fundação usar um imóvel e equipamentos do instituto de forma gratuita; a existência de 58 funcionários com acúmulo de cargos nos dois entes; pagamento pela fundação de salários acima do teto e não publicação da remuneração dos funcionários.

Outro Lado

Procurada pela Folha, a Fundação Butantan afirmou estar à disposição do MPC e do TCE para esclarecimentos. "Os apontamentos do MPC estão absolutamente equivocados e demonstram, no mínimo, desconhecimento do órgão em relação ao modelo de fundações", diz em nota.

A fundação afirmou ter "procedimentos próprios de uma entidade de natureza privada", mas se pautar pelos "princípios da legalidade, da economicidade, da impessoalidade, da publicidade, da moralidade e da eficiência".

A nota diz ainda que o controle externo da fundação é feito pela Curadoria de Fundações, órgão do Ministério Público que faz a fiscalização das fundações privadas e que presta esclarecimento ao TCE quando necessário.

"Não é verdadeira a informação de que a fundação controle verbas pagas ao Instituto Butantan", diz a nota.

"Não houve repasse de recursos orçamentários do Governo de São Paulo à Fundação Butantan em 2015 nem em 2016. O MPC omite o fato de que, por impedimento legal, à época, de repassar recursos à fundação referentes à compra de soros e vacinas, o Ministério da Saúde encaminhou o valor ao governo paulista, visando ao ajuste de contas. Os recursos, portanto, tiveram como origem a União."

Sobre a compra dos ventiladores, a fundação afirma que tiveram o objetivo de salvar vidas num momento crítico e de escassez mundial de oferta.

"A fundação conseguiu comprar equipamentos de alta qualidade, por preços inferiores aos obtidos por diversos estados e municípios brasileiros. A própria área técnica do TCE já se manifestou pela regularidade da aquisição."

A nota diz ser incorreta a informação sobre descumprimento da LAI, que não se aplica a entidades privadas, e que a contratação de funcionários celetistas se deu por meio de processo seletivo da fundação.

A fundação afirma não usar imóvel de forma gratuita, mas arcar com despesas de limpeza, segurança, equipamentos e reformas.

"Nos raros casos em que colaboradores do instituto trabalham na fundação, isso se dá fora da jornada de trabalho desses servidores no estado, sem conflitos de horário, havendo contraprestação paga pela fundação."

A fundação diz ainda que os limites de salário não são regidos pelo teto constitucional, mas por seu estatuto.

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