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Dirigentes brancos jamais vão se sensibilizar por situação que não sentiram, diz Grafite

Ex-jogador vê racismo no futebol, em parte, como consequência da falta de representatividade

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São Paulo

Grafite, 43, costuma sentir um incômodo quando visita os restaurantes de alto padrão na Barra da Tijuca, onde mora no Rio de Janeiro.

A sensação que ele tem é a de que sua presença nesses lugares não é bem-vinda. Somente é aceita porque ele é um ex-jogador de futebol famoso, atacante da seleção brasileira na Copa de 2010, campeão mundial pelo São Paulo em 2005 e, atualmente, comentarista do SporTV.

"Eu vejo [o preconceito] pelos olhares, pela linguagem corporal das pessoas quando elas veem um homem negro, de 1,90 m, entrar no restaurante", diz o ex-atleta à Folha. "Aí, elas percebem que eu sou o Grafite. Por ser uma pessoa conhecida, isso me deixa um pouco fora disso."

Grafite afirma que falta representatividade em cargos diretivos no futebol brasileiro - Ana Branco - 29.abr.22/Ag. O Globo

Mas nem sempre foi assim. Nem mesmo enquanto era jogador. Em 2005, ele foi vítima de racismo durante uma partida pelo São Paulo contra o Quilmes (ARG), no Morumbi, pela Copa Libertadores. Grafite se recorda de ter sido chamado de "negro de merda" pelo argentino Leandro Desábato. Terminado o jogo, o delegado Osvaldo Nico Gonçalves entrou em campo e deu voz de prisão ao defensor por racismo. Depois de ter passado dois dias preso, Desábato pagou fiança de R$ 10 mil e foi liberado para voltar ao seu país.

Passados 17 anos, o ex-atacante ainda lamenta não ter levado o caso adiante para ver as consequências. A frustração dele é ainda maior diante dos recentes casos de racismo no futebol, sobretudo envolvendo os clubes brasileiros na Libertadores —torcedores do Boca Juniors (ARG) e da Universidad Católica (CHI) fizeram gestos imitando macacos durante jogos contra o Corinthians e o Flamengo, respectivamente.

Na opinião dele, em parte, o problema reflete a falta de representatividade nos cargos de direção no futebol.

"Entre os dirigentes, a grande maioria é branca. Jamais vão se sensibilizar por uma situação que não sentiram na pele. Não tem técnico negro, não tem dirigente negro", disse. "A gente fica de mãos atadas. A gente fica à mercê de essas pessoas se sensibilizarem."

Como você reagiu diante dos recentes casos de racismo no futebol, como as situações envolvendo times brasileiros na Libertadores? Minha reação é sempre a mesma de quando começamos a ter noção disso. O meu caso é de 2005, mas hoje está ficando mais explícito. Fico perplexo. Não tem punição, não tem pena. A pessoa paga uma multa e sai.

Existe uma visão de que problemas como o racismo são coisas que fazem parte do folclore do futebol? O estádio, o futebol brasileiro, sempre foi um lugar de desafogo na sociedade. Às vezes, um cara está sem emprego, com problemas com a mulher, problemas financeiros, e ele vai ao estádio para ter duas horas em que ele esquece tudo. O estádio, também, sempre foi visto como um lugar onde se pode tudo: chamar juiz de veado, o adversário de macaco... Só que a sociedade evoluiu e essas coisas viraram crime. Parece que o torcedor ainda tem esse sentimento de que pode tudo. A gente não pode ser assim.

Grafite vai ao chão em partida do São Paulo contra o Quilmes, em 2005; ao fim do jogo, o rival Desábato foi levado a uma delegacia - Fernando Santos - 14.abr.05/Folhapress

O que precisa ser feito para essa mentalidade mudar e para combatermos o racismo? A solução é de todos. Temos que dar conhecimento aos torcedores porque alguns não têm conhecimento das leis. Isso tem de partir dos clubes, dos dirigentes e dos próprios jogadores. Não adiante ter só punição. Dá a impressão de que, para o negócio futebol, atitudes mais radicais sobre isso não são bem-vistas. É muito complexo. Faltam atitudes mais energéticas.

Qual o papel de entidades como CBF, Conmebol e Fifa no combate ao racismo no futebol? A Fifa e a Uefa têm ações mais contundentes onde os casos [de racismo] ocorrem, mas não com tanta frequência. Tem casos de que a gente nem tem conhecimento. Além disso, entre os dirigentes, a grande maioria é branca. Jamais vão se sensibilizar por uma situação que não sentiram na pele. Não tem técnico negro, não tem dirigente negro. A gente fica de mãos atadas. A gente fica à mercê de essas pessoas se sensibilizarem.

​​​Em recente entrevista, o técnico Roger Machado, do Grêmio, afirmou que os discursos do presidente Jair Bolsonaro dão autorização para o racismo. Você também vê dessa maneira? Sou muito restrito na minha vida pessoal para falar de política porque é muito extremismo. Não existe meio-termo. Mas é uma das causas também. As redes sociais ajudam bastante na disseminação de notícias falsas também. A gente fala que é mundo virtual, mas a violência vem à tona no mundo real. A gente vê torcedores marcando brigas pela internet, gente ligada ao nazismo, ao extremismo, gente que odeia gays. Não atribuo apenas ao governo [Bolsonaro], mas tem sua parcela.

Como comentarista de uma grande rede, você sente que tem uma plataforma e uma importância para falar sobre racismo? Eu me sinto incomodado de falar sobre isso porque não deveríamos estar falando sobre isso em 2022. Eu me sinto incomodado, mas tenho o dever de falar, pelo palanque que eu tenho para falar. Eu me sinto obrigado e ser a voz daquelas pessoas que não têm conhecimento das coisas e sofrem com o racismo.

Ainda se incomoda de falar do caso de racismo que sofreu em 2005? Teve um certo tempo em que me incomodava. Mas hoje em dia é tranquilo. Eu não me sinto à vontade. Não é que eu goste de falar, mas eu discuto, eu falo. Tenho o arrependimento de não ter levado o caso adiante. Se eu tivesse levado, talvez não desse em nada, como acontece com frequência. A gente acaba se adaptando e achando normal. Eu não acho normal. E, hoje, gosto de falar sempre do Observatório Racial do Esporte. O trabalho deles, mapeando os casos, é muito importante.

Desábato passou dois dias preso pelas ofensas a Grafite; pagou R$ 10 mil de fiança e foi liberado - Jorge Araujo - 14.abr.05/Folhapress

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