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Descrição de chapéu Artes Cênicas

Onda de espetáculos reage a conservadorismo ao destacar negros, gays e trans

Minorias passam a ocupar novos papéis de peso nos palcos em tempos de grande polarização política

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São Paulo

O nome pode soar anacrônico: Sociedade Abolicionista de Teatro. Remete à memória da escravidão, oficialmente finda no Brasil há 130 anos, mas também ao que resta dela na sociedade.

“De certo modo, a verdadeira abolição ainda é um processo que não se completou”, afirma o diretor José Fernando Peixoto de Azevedo, coordenador da Sociedade Abolicionista, plataforma que reúne em grande parte artistas negros. “E isso repercute em todas as situações em que o negro pobre acaba sendo regrado a uma lógica de exceção.”

É nesse jogo entre passado e presente que o grupo costura “Três Pretos: Valor de Uso”, fábula que parte da ideia de que o preto, em várias acepções, sempre foi reduzido a um valor de troca —do negro escravizado a itens materiais, como o café e o petróleo.

“Tratamos isso como formas de energia social, como essas formas acabam sendo reduzidas. No caso do escravo, como ele pode ser reduzido ao corpo”, diz o encenador.

O espetáculo integra uma discussão maior, um projeto no Sesc Pompeia chamado Pensamento Negro Brasileiro, que debate a obra de intelectuais e artistas afro-brasileiros e sua representatividade.

É algo há muito posto em pauta, mas que só vem ganhando corpo no país nos últimos anos, com artistas rediscutindo e remodelando obras para entender o lugar de fala e o protagonismo de minorias.

É o que aconteceu com a Companhia Mungunzá de Teatro e seu “Luis Antonio - Gabriela”, peça documental que narra a história do irmão mais velho do diretor Nelson Baskerville. Nos anos 1960, Luis Antonio desafiou sua família conservadora e partiu para a Espanha, onde virou Gabriela.

Apresentada desde 2011, a peça trazia o ator Marcos Felipe como protagonista, mas há cerca de um ano o grupo sentiu necessário fazer mudanças depois de manifestações do Movimento Nacional de Artistas Trans e do Coletivo T, que denunciam a falta de representatividade de transexuais em trabalhos artísticos.

“Num primeiro momento, a gente se sentiu injustiçado, porque a peça abriu muito a discussão sobre a questão trans”, comenta Felipe. “Mas logo percebemos que o mundo andou e a gente precisava deixar o espetáculo vivo.”

“Se você fica se defendendo, o discurso da peça vai por água abaixo, porque vira apenas uma coisa estética. E o espetáculo nasceu para dar voz a quem não teve voz a vida inteira”, continua Baskerville.
A versão encenada agora traz, logo de início, Felipe no papel de Luis Antonio. Quando o personagem se transforma em Gabriela, porém, o protagonista fica a cargo da transexual Fabia Mirassos.

Não se trata de uma decisão política, afirma o diretor, mas de mudança de comportamento. “Eu acho que a grande revolução no mundo pode vir a partir do comportamento, da aceitação do outro.”

É também pela empatia que o projeto Flexões Performáticas: Gênero, Número e Grau, no Centro Cultural Banco do Brasil paulistano, busca quebrar preconceitos. A ideia é aproximar o público da performance e da relação com o corpo —feminino, masculino, cisgênero ou transexual.

O conceito, diz a artista e curadora Luana Aguiar, é “sentir o próprio corpo tal como ele é, e sentir o que se quer ser, e não o que os outros esperam que sejamos. O corpo não é uma prisão, ele precisa estar em conexão com o mundo”.

Fabia Mirassos acrescenta que não se trata só de mudar o preconceito, mas também de tomar o protagonismo. “Cabe a nós chegar e dizer ‘esse é o meu lugar’. Porque, se eu só aceitar, é muito fácil culpar o outro por uma situação em que você se coloca.”

Algo parecido está no musical “Lugar de Escuta”, do Coletivo M.o.t.i.m, que se baseia no tarô —o público tira cartas, que determinam quais das 22 cenas serão encenadas— para debater o feminino.

“Fala-se muito de lugar de fala, mas em nada adianta se a gente não prepara um lugar de escuta”, diz Fabiana Tolentino, que concebeu e dirige a peça. “Você precisa preparar o espectador. É um diálogo com a plateia, não um monólogo.” 

Mas essa aceitação do outro encontra barreiras e reações contrárias. O ano passado, por exemplo, foi marcado por polêmicas na arte, com exposições fechadas (caso de “Queermuseu”) e peças canceladas —“O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, com a atriz travesti Renata Carvalho no papel de um Cristo transexual, teve sessões vetadas pela Justiça depois de ser acusada de desrespeito a religiões.

“A gente está vivendo um processo em que tudo isso vem sendo interrompido, cancelado”, comenta Peixoto de Azevedo, da Sociedade Abolicionista, sobre a ascensão do conservadorismo, em especial no rastro das últimas eleições.

“A grande questão nesse momento é: quais as condições de continuar esses processos [de abertura] que foram iniciados nos últimos anos? Precisamos ser capazes de assimilar isso no processo artístico.”

É algo que surgiu na nova montagem de “Tem Alguém que nos Odeia”, thriller de Michelle Ferreira sobre um casal de mulheres que sofre ataques homofóbicos de vizinhos. A dramaturga criou o texto em 2011, inspirada no caso de gays agredidos com lâmpadas na avenida Paulista. 

“Eu queria muito que essa peça fosse datada. Só que não, ela começa a ganhar outros contornos”, comenta a autora, lembrando eventos recentes, como pichações homofóbicas e racistas em banheiros de escolas e universidades.

Pouco mudou da primeira montagem para cá, fora algumas soluções cênicas e a inclusão de um gromelô (uma linguagem teatral inventada e sem sentido), que representa a língua de uma personagem estrangeira e também a incompreensão.

“Mas a peça ganhou contornos mais macabros”, diz Ferreira, que também assina a direção. Os ensaios começaram no início da corrida eleitoral, e as artistas sentiram o acirramento da polarização.

“De alguma forma, a gente colocou isso no palco”, seja pelo suspense maior, seja pelo acréscimo da frase “ele não vai ganhar”, em referência ao presidente eleito Jair Bolsonaro e ao conservadorismo.

“Depois desse progressismo que estamos vivendo, [um movimento reacionário] era esperado”, diz a diretora. “É a sístole e a diástole da história. Mas a gente continua puxando a carroça para frente.”

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