Morre Sonny Mehta, editor de extremo silêncio e bom gosto
Educado para ser diplomata, indiano se tornou um dos nomes mais reverenciados do mundo literário
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O ano de 2019 foi tristíssimo para o mundo editorial. Entre outros, morreu subitamente o editor literário da Random House Espanha, Claudio López Lamadrid, aos 59 anos, em 11 de Janeiro; Peter Mayer, icônico ex-presidente da Penguin, responsável pela publicação dos "Versos Satânicos" de Salman Rushdie, em 10 de maio; Susan Kamil, atual editora de Rushdie e de outros gigantes como Elizabeth Strout, aos 69, no dia 8 de setembro. E agora o lendário editor da Knopf, Sonny Mehta, morreu no dia 30 de dezembro, aos 77 anos.
Embora eu conhecesse bem Peter e Susan, Claudio e Sonny eram dois dos meus melhores amigos no mundo editorial. Como quando Claudio morreu, agora com a morte de Sonny não paro de receber mensagens de pêsames, tão próximos e importantes eram os dois para a minha vida como editor. Sonny foi o mentor de muitas das minhas realizações e esteio em muitos momentos difíceis.
Para mim, desde a sua morte é difícil pensar em outra coisa. Estou em Nova York, cidade onde Sonny —um indiano de nascimento que dividiu grande parte da sua vida entre Londres e Nova York— era o grande ícone do mundo editorial.
Seu primeiro grande feito foi simplesmente uma revolução no mundo dos paperbacks britânicos, com a recriação da Picador, pela qual lançou autores como Bruce Chatwin, Ian McEwan, Germaine Greer, Salman Rushdie, entre outros. Rushdie aliás, este ano está se sentindo duplamente órfão, de seu ex-editor e de sua editora de todos os livros mais recentes, Susan Kamil.
De família indiana afluente, Sonny foi criado para ser diplomata e desagradou muito aos pais saindo de Cambridge, quando decidiu seguir carreira como editor. Mal sabiam eles que seu filho viria a ser o editor mais reconhecido do mundo, rapidamente.
Sonny foi laureado com todas as honrarias atribuídas a editores, mas era um homem avesso a prêmios e badalações. Seu carisma vinha do silêncio e do extremo bom gosto literário e visual. Manteve com essas qualidades a importância do selo editorial que administrou por 32 anos.
Me contou que em 1987, ao ser convidado para ser o terceiro presidente da Knopf, depois de Alfred Knopf e Bob Gottlieb, foi recebido em Nova York como um indiano radicado em Londres, isto é, com preconceito e desdém. Respondeu a isso com seu habitual silêncio e basicamente com grandes livros.
No ano de 2019, cinco dos dez melhores livros do ano, escolhidos pelo New York Times, foram das duas editoras que ele dirigia, a Knopf e a Doubleday.
Creio que o conheci no final da década de 1980, ou no início dos anos 1990. Fomos apresentados em Frankfurt e me impressionei de cara com o seu jeito de cumprimentar as pessoas. Mal pude acreditar que me era dada a honra de conhecê-lo. Nem sonhava, é claro, que nos tornaríamos amigos bastante íntimos.
Sonny tinha mãos e ossos muito finos. Nos últimos anos teve inúmeras fraturas. Mesmo com ossos frágeis ele cumprimentava com o braço todo esticado e a mão muito firme. Falava baixo e pausadamente.
Fomos nos tornando próximos ano a ano, e creio que sua importância foi fundamental para parte do reconhecimento internacional ao meu trabalho e à Companhia das Letras. Inúmeras vezes se ofereceu para organizar encontros de editores da Knopf e da Random House, ou de autores americanos, visando promover e apresentar seu jovem colega brasileiro.
É claro que deve ter ficado orgulhoso por eu ter gentilmente agradecido e recusado a sua oferta em todas as ocasiões. Veio ao Brasil e adorou conhecer o país, mas sempre deixou muito claro que era avesso a festivais literários e ria dos meus convites insistentes para vir a Paraty. No Brasil conheceu Caetano Veloso, que anos depois viria a publicar.
Jantei com ele, minha mulher e o casal Ishiguro há dois anos em Londres, num restaurante russo escolhido pelo escritor. Kazuo Ishiguro, ou Ish —como era chamado por Sonny e pelos íntimos— foi sem dúvida um de seus autores mais queridos. Na saída, o editor lembrou que começara a trabalhar com livros naquela mesma rua.
Um ano e meio depois, compartilhamos os festejos do prêmio Nobel de Ishiguro, em Estocolmo, onde Sonny cuidava de oferecer drinques a todos os outros editores, para encerrar as atividades da noite, querendo prolongar as celebrações o máximo possível.
Sonny vivia cercado por originais, em pilhas de folhas soltas presas por um elástico, que levava para a sua casa para ler e editar, ainda no papel. Não tenho notícia de que ele passou a editar digitalmente, mas posso estar enganado.
Gostava de receber autores e amigos em seu apartamento na Park Avenue. Lá o ambiente parecia com uma biblioteca sem fim, forrado por vezes com tapetes e tapeçarias indianas. Muitos autores moravam com ele, ao vir lançar seus livros em Nova York.
Soube que até a ambulância chegar para levá-lo para o hospital com dificuldades respiratórias, estava trabalhando na edição do último livro de Ishiguro, do qual só ele e o editor da Faber & Faber da Inglaterra tinham notícia.
Segundo sua mulher, a escritora Gita Mehta, Sonny morreu serenamente, depois de enfrentar duas pneumonias que o atacaram de uma só vez. Como disse Gita a uma amiga em comum, Sonny teve uma morte semelhante à sua vida, sem falhas.
Sua generosidade para comigo é responsável por muitos dos meus acertos na vida profissional. Sem ele o mundo editorial nunca mais será o mesmo.
Hoje passei em frente a seu escritório. Levará um bom tempo para entender que ele não estará mais fisicamente presente no prédio da Broadway entre as ruas 55 e 56. Mas o seu silêncio e sabedoria continuarão a inspirar todos nós.
Luiz Schwarcz é editor e escritor e atualmente preside o grupo Companhia das Letras
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