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Biografia de George Orwell mostra como '1984' se aproxima dos dias de hoje

Pesquisador britânico analisa a vida e a obra do autor de distopia literária sob as lentes do brexit, da China e de Trump

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São Paulo

“Admitir que um oponente possa ser tanto honesto como inteligente é visto como algo intolerável. Bem mais satisfatório, em termos imediatos, é gritar que ele não passa de tolo ou canalha, ou ambos, do que descobrir o que ele é de fato. Esse hábito mental, entre outras coisas, é o que torna a previsão política tão extraordinariamente ineficaz em nossa época.”

George Orwell não conhecia o Twitter, Donald Trump ou a tropa de choque do bolsonarismo nas redes sociais quando escreveu, em dezembro de 1944, essa passagem de uma de suas colunas na imprensa britânica.

O trecho demonstra a perícia de Orwell, morto há 70 anos, em analisar a política e a sociedade em décadas tão turbulentas como as de 1930 e 1940 —e, ao mesmo tempo, indica a atualidade da sua interpretação.

Ilustração da artista plástica Regina Silveira para edição especial de "1984" da Companhia das Letras - Divulgação

Muitos já trilharam o caminho de saudar o autor como uma espécie de profeta do totalitarismo por seus dois últimos livros, “A Revolução dos Bichos” e “1984”.

Mas, segundo o pesquisador britânico Richard Bradford, “Orwell não estava exatamente prevendo o que iria acontecer 70 anos depois". "Ele estava percebendo certas tendências da sociedade que poderiam reemergir de outras maneiras”, diz, em entrevista.

O professor de teoria e história literária na Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, busca em “Orwell: Um Homem do Nosso Tempo” trazer para o presente o criador do pesadelo totalitário vislumbrado em “1984”.

Ilustração da artista plástica Regina Silveira para edição especial de "1984" da Companhia das Letras - Divulgação

Nele, a Inglaterra desapareceu nas entranhas do superestado de Oceânia, governado pelo Partido do Grande Irmão. O protagonista, Winston Smith, ele próprio um pequeno funcionário do Ministério da Verdade responsável por reescrever o passado, começa a questionar os fundamentos da sua realidade.

Entre eles o "duplipensamento", que consiste em “saber e não saber, ter consciência da verdade honesta e completa contando mentiras meticulosamente engendradas, defender ao mesmo tempo duas opiniões que se cancelam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando em ambas”.

Talvez o subtítulo “um homem para todos os tempos” fosse mais apropriado para o livro de Bradford, recém-publicado no país.

Isso porque, ainda que Eric Arthur Blair tenha morrido de tuberculose em janeiro de 1950, sete meses depois da publicação de “1984”, a presença de seu pseudônimo, Orwell, continua viva no imaginário do século 21.

Ilustração da artista plástica Regina Silveira para edição especial de "1984" da Companhia das Letras - Divulgação

Um episódio incontornável é a entrevista em janeiro de 2017 em que Kellyanne Conway, então assessora de Donald Trump, diz que o porta-voz da Casa Branca estava só apresentando “fatos alternativos” ao afirmar que o novo presidente americano atraíra “a maior audiência de todos os tempos para uma cerimônia de posse” —algo facilmente desmentido por fotografias.

As vendas de “1984” nos Estados Unidos cresceram 9.500% na semana seguinte a essa entrevista, segundo a editora Penguin.

“Isso tem sido algo recorrente durante o regime de Trump, ainda que eu não encare o próprio como um ativista do duplipensamento, porque ele não é inteligente o suficiente”, diz Bradford.

Ele enxerga essa versão americana como um "duplipensar" improvisado, enquanto no Reino Unido uma forma mais calculada vem exercendo papel relevante desde 2016.

“O que aconteceu durante a campanha do brexit? As pessoas deliberadamente quiseram acreditar em coisas absurdas. Há o famoso caso do anúncio na lateral de um ônibus que dizia que o brexit significaria uma economia de £ 350 milhões por semana. Foi dito inúmeras vezes que isso era uma mentira.”

Ainda assim, Bradford aponta uma diferença fundamental. Se em “1984” o "duplipensamento" era uma “doutrina projetada para negar aos cidadãos o acesso à verdade”, diz ele, “a campanha do brexit parece ter triunfado por meio da suposição de que o eleitorado consideraria seu direito democrático a alegre aceitação de mentiras como alternativa preferível aos fatos”.

Em termos biográficos, o professor reconhece que há pouco a se acrescentar ao que já se sabe sobre a vida de Orwell —nasceu na Índia sob domínio britânico em 1903, estudou no prestigioso colégio de Eton, foi policial na antiga colônia da Birmânia, atual Mianmar, viveu entre os miseráveis de Paris e Londres, lutou contra os fascistas na Guerra Civil Espanhola, trabalhou na BBC durante a Segunda Guerra Mundial, se isolou numa ilha escocesa para escrever “1984” e morreu pouco depois.

Isso não necessariamente é uma desvantagem para o público brasileiro, já que as biografias anteriores de Orwell nunca foram traduzidas por aqui.

“Você eventualmente para de descobrir fatos novos sobre escritores, os arquivos e cartas vão sendo descobertos e se esgotam. É possível saber tudo sobre eles em termos de evidência empírica, mas há novas formas de os enxergar.”

Interpretado como sátira da União Soviética stalinista à época de seu lançamento, “1984” parece ter encontrado um paralelo mais eficaz na cidade chinesa de Rongcheng, afirma Bradford.

O regime de Xi Jinping usa o lugar como laboratório de um sistema de vigilância que inclui câmeras capazes de leitura labial de comentários que podem ser considerados atos de dissidência política. Os dados ajudam a ranquear os cidadãos, que recebem um crédito inicial de mil pontos e os podem perder à medida que incorram em comportamentos inadequados na visão do Partido Comunista Chinês.

A questão que intriga Bradford é o que aconteceria ao cidadão que perdesse todos os pontos. “A China é ‘1984’ hoje.”

Orwell: Um Homem do Nosso Tempo

Avaliação:
  • Preço: R$ 69 (376 págs.) e R$ 48,30 (ebook)
  • Autor: Richard Bradford
  • Editora: Tordesilhas
  • Tradução: Renato Marques de Oliveira

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