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Saiba como o cravo, ofuscado pelo piano no século 19, reconquistou os holofotes

Instrumento que frequentava casas de poderosos voltou à moda em 1970 e 1980 e hoje é construído a partir de modelos antigos

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São Paulo

Ele era uma grande estrela nos séculos 17 e 18, frequentava a casa de reis e de outros poderosos, era amigo de famosos, Bach dedicou um livro a ele que se tornaria um clássico. O século 19 o esnobou, os românticos preferiram um de seus primos distantes, com um ar mais moderno. Mas ele deu a volta por cima nos anos 1900. De início, com um ar de exotismo, para, depois, ser levado a sério e às universidades.

O cravo, porém, segue sendo um instrumento musical praticamente desconhecido para aqueles não familiarizados com a música barroca, ofuscado pelo piano, que surgiu depois e se firmou no tempo de músicos como Beethoven e Brahms. Nos anos 1600 e 1700, ele foi o astro das apresentações de salões e grandes nomes compuseram em seus teclados, como Bach, autor de “O Cravo Bem Temperado”, coleção de prelúdios e fugas que é uma das obras mais importantes da história da música.

É à história do retorno do instrumento aos holofotes no Brasil do século passado que se dedica o recém-lançado livro “O Cravo no Rio de Janeiro do Século XX”, dos professores, musicólogos e cravistas Marcelo Fagerlande, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mayra Pereira, da Federal de Juiz de Fora, e Maria Aida Barroso, da Federal de Pernambuco. O volume, fartamente ilustrado, é o resultado de seis anos de pesquisas dos três, sobretudo em jornais e revistas.

O cravista francês Olivier Baumont em apresentação ao cravo na igreja Nossa Senhora da Glória do Outeiro, no Rio de Janeiro, no evento Baroque in Rio, em agosto de 2019 - Pedro Ladeira/Divulgação

O cravo esteve presente no país desde a chegada dos portugueses, fazendo parte da vida musical das cidades, mas, quando perde importância no século 19, muitos são destruídos e pouco fica na memória, diz Fagerlande. O piano, por ter volume mais alto, mais adequado às grandes salas, foi substituindo, na moda e no gosto das pessoas, o cravo como o instrumento de teclado mais importante.

À primeira vista, o cravo parece um piano de cauda, com teclas —podem ser duas ou uma fileira delas— e, internamente, sob um tampo que se ergue, cordas. Porém, ao soar, lembra mais uma harpa, ou várias harpas. Isso porque no cravo as cordas são pinçadas, como faz o dedo de um violonista ou harpista, ao passo que no piano o som vem de mecanismos ligados às teclas que martelam as cordas.

Playlist proposta pelo professor Marcelo Fagerlande, com cinco obras para conhecer o cravo


“No século 20, o público, talvez um pouco cansado do romantismo, foi querendo ouvir outra coisa, e o cravo teve seu ápice nos anos 1970 e 1980”, diz Fagerlande. Houve, naqueles anos, o crescimento de um movimento do que se chama execução musical historicamente orientada, uma tentativa de recuperar a sonoridade das músicas antigas, fazendo com que soassem como soavam na época em que foram compostas. Para tanto, foi necessário, é claro, que os instrumentos soassem como então.

Mas já não existiam muitos cravos do período barroco que funcionassem perfeitamente. Fabricantes de pianos começaram então a fazer um cravo moderno, mas pessoas mais detalhistas, conta William Takahashi, luthier de cravos, passaram a fazer réplicas de instrumentos antigos, e se descobriu que a sonoridade era mais adequada à música que se pretendia tocar.

“O cravo moderno era praticamente um piano, tinha cordas grossas e estrutura de aço, ao passo que o cravo barroco é todo de madeira, então tem uma sonoridade diferente”, afirma Takahashi, em seu ateliê em Sapopemba, na zona leste paulistana.

Hoje, os cravos são obras artesanais, construídas por gente como Takahashi a partir de modelos, ou plantas, de instrumentos que sobreviveram aos séculos e estão em museus, conservatórios e castelos. Takahashi diz que os músicos costumam encomendar cravos de acordo com o repertório que preferem tocar, baseados em modelos italianos para compositores italianos, por exemplo.

Para os amantes de Bach, há instrumentos na Alemanha nos quais, acreditam, o músico teria tocado e as instituições por eles responsáveis disponibilizam plantas de construção. No castelo de Versalhes, na França, há um cravo de 1746 que serviu de base para um dos instrumentos de Fagerlande, feito na Alemanha nos anos 1980.

Takahashi fabrica, por ano, de três a cinco cravos, e reforma outros tantos. Na visita a sua oficina, em fevereiro, haviam dois cravos e um virginal –instrumento semelhante ao cravo no qual as cordas ficam paralelas ao teclado– para reparos e um cravo sendo construído.

Detalhe da pintura 'Lição de Música [Mulher no Virginal com Cavalheiro]', de Johannes Vermeer, pintado entre 1662 e 1665 e no qual se vê o virginal, instrumento semelhante ao cravo em que as cordas são paralelas ao teclado - Reprodução

Não são muitos os construtores de cravo no Brasil e, a depender do tamanho e da ornamentação —ao replicar o móvel do passado é possível também reproduzir pinturas ou imagens em marchetaria—, os instrumentos podem chegar a custar R$ 100 mil. Da madeira, que vem da Europa e da África, às cordas, que devem ser de latão ou ferro, tudo no instrumento segue as especificações dos séculos 17 e 18.

O livro recém-lançado, que é, também, um retrato da vida cultural do Rio de Janeiro, mostra como o cravo volta ao Brasil graças a músicos estrangeiros, chegando em meio a apresentações de vaudeville, para, após algumas décadas hesitantes, chegar ao rádio e à televisão nos anos 1950 e ao sucesso de público em ciclos de apresentações nos anos 1960.

Os anos 1970 viram surgir diversos grupos dedicados à música barroca e, em São Paulo, em 1975, um festival dedicado ao cravo promoveu a estreia de obras de compositores brasileiros, como Sousa Lima e Almeida Prado, para o instrumento. Nos anos 1980 surge, na Unicamp, o primeiro curso superior de cravo e, daí em diante, a formação no instrumento toma a universidade.

“No século 21, ouvir o cravo faz você parar o que estiver fazendo e mergulhar em outro mundo”, diz Fagerlande. “A música transporta, e isso atrai as pessoas.”

O Cravo no Rio de Janeiro do Século XX

Avaliação:
  • Preço: R$ 120 (384 págs.)
  • Autoria: Marcelo Fagerlande, Mayra Pereira e Maria Aida Barroso
  • Editora: Rio Books

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