Siga a folha

Descrição de chapéu Cinema

Entenda como bem antes de Bolsonaro filme sobre Hitler previu o fascismo no Brasil

Rodado na época do AI-5, longa de José Agrippino de Paula cria alegoria da veia autoritária submersa no país

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Rio de Janeiro

O Terceiro Reich ressurge no Terceiro Mundo. Num prédio inacabado, Hitler joga tijolos sobre escombros e solta frases desconexas. Sua farda está escangalhada. Cercado de favelas, o Führer comanda um nazismo desordenado e provinciano, contestado por super-heróis irracionais.

Rodado em 1968, às vésperas e durante a vigência do Ato Institucional nº 5, o AI-5, marco da supressão de direitos individuais na ditadura militar, o filme “Hitler 3º Mundo” traduzia uma visão premonitória de seu diretor, José Agrippino de Paula. Dono de uma imaginação pop, elevada ao cubo em seu romance “PanAmérica”, integrado ao ciclo do tropicalismo, Agrippino criava uma alegoria do nazi-fascismo submerso na sociedade brasileira.

Mais de cinco décadas depois, a alegoria do autoritarismo terceiro-mundista mantém sua contundência. As ameaças autoritárias do presidente Jair Bolsonaro conferem nova vitalidade a “Hitler 3º Mundo”, um dos filmes menos conhecidos do cinema marginal.

A distopia hoje se forma com ataques de Bolsonaro a ministros do Supremo Tribunal Federal, o STF, insinuações de intervenção militar, descrença nas eleições e apologia da ditadura. Fora do governo, a expansão de células neonazistas no país completa o cenário ultraconservador. Depois do desfile de blindados em Brasília e das mobilizações antidemocráticas de bolsonaristas para este 7 de setembro, renasce a paranoia de um golpe de Estado.

Amigos e ex-colaboradores de Agrippino reconhecem a atualidade de “Hitler 3º Mundo”. “Para o tempo que nós estamos vivendo, é perfeito”, diz o humorista Jô Soares.

No filme, Jô vive um samurai que percorre favelas e estações de trem, golpeia Hilter no banheiro e comete haraquiri, forma de suicídio ritual praticada no Japão. “O roteiro era feito no dia a dia. Ele estava na minha casa e eu falei ‘vamos fazer um samurai louco, que é dono dos mendigos de São Paulo?’. Fui filmar na rua com aquela roupa, com muito improviso, que era a alma do filme”, lembra Jô.

O fotógrafo Jorge Bodanzky viabilizou a realização do longa. Agrippino falou a ele da ideia de adaptar “PanAmérica” para o cinema, mas se queixou da falta de dinheiro. “Eu dou um jeito”, prometeu Bodanzky, que, em seus trabalhos como câmera, passou a guardar pontas de filmes. Ao ser avisado de que as sobras permitiam um dia de filmagem, Agrippino pensava nas performances e saía com o carro de Maria Esther Stockler, sua mulher e colaboradora decisiva até os anos 1970.

“Era tudo improvisado. Mas era uma improvisação relativa, em cima do pensamento dele. Agrippino nem queria saber da parte técnica. Ele criava a cena, deixava os atores soltos, se recolhia num canto e morria de rir. Eu tinha total liberdade com a câmera. Tem muito plano-sequência”, recorda Bodanzky. “É o filme mais radical do cinema marginal. Injustamente esquecido.”

“Agrippino lidava com o acaso a partir de princípios. O improviso era mais ou menos controlado”, avalia a documentarista Cristina Fonseca, namorada do escritor entre 1977 e 1979. “O filme é mais atual do que na época em que ele fez. A ditadura de 1964 era organizada. Hoje, vemos um nazi-fascismo anárquico. Bolsonaro parece uma figura de Agrippino, como nesse gesto de pegar um violão e transformar em arma, além das frases absurdas.”

“Hitler 3º Mundo” reúne performances autônomas e forma um painel coeso de nonsense político, representando a nazificação do Brasil. O filme incorpora personagens históricos e mitos da cultura de massa —um procedimento estilístico semelhante ao de “PanAmérica”. O Coisa, super-herói do Quarteto Fantástico da Marvel, aparece na resistência a Hitler. Um robô é criado em laboratório para assassinar o ditador, mas enlouquece e atira a esmo.

Montado pouco antes, o espetáculo “Tarzan 3º Mundo”, do grupo Sonda, com criação coreográfica de Maria Esther Stockler, influenciou o longa. Entre as inovações de choque, estão cenas de tortura e nus frontais masculinos e femininos. José Ramalho vive Hitler. O elenco inclui ainda Stockler, Ruth Escobar, Eugênio Kusnet e Túlio de Lemos, entre outros.

“A gente achou que seria muito engraçado fazer um Hitler no Terceiro Mundo amante do Capitão América”, conta Jô Soares.

Na fase mais sombria da ditadura, Bodanzky escondeu na casa de sua mãe uma cópia de 16 milímetros, há pouco digitalizada pelo Sesc paulista. Nos anos 1970, o fotógrafo conseguiu que “Hitler 3º Mundo” fosse exibido num cineclube de Ulm, na Alemanha. Mais tarde, houve nova projeção para três espectadores na Mostra Panorama, do Festival de Berlim. Bodanzky testemunhou a rejeição dos alemães ao filme.

“Nos anos 1970, a cultura era mais empoderada. As pessoas tinham mais coragem”, afirma o pintor José Roberto Aguilar, amigo de Agrippino. "Houve um desempoderamento da esquerda. Apesar da ditadura, ‘Hitler 3º Mundo’ traz uma mensagem de força interna que a gente não vê agora. Aquele Coisa é libertador. Hoje está muito mais cruel. O presidente ditador foi eleito pelo povo.”

O monstro do obscurantismo atormentava Agrippino. No início daqueles anos 1970, o medo de ser preso fez com que ele deixasse o país e iniciasse com Stockler suas viagens ao continente africano.

“Ele ficou com muito medo”, lembra Cristina Fonseca. “Agrippino era um pessimista, achava que as coisas iam ficar pior no país. Já numa época em que as pessoas estavam mais felizes, nos anos 1980, ele repetia ‘vai ficar pior’. A loucura dele tinha a ver com uma visão lúcida da realidade.”

Diretora do curta “Passeios no Recanto Silvestre”, um retrato dos anos finais do escritor, a psicanalista Miriam Chnaiderman defende a exibição de “Hitler” em 2021. “O filme coloca a questão da desigualdade e do autoritarismo. É também sobre o papel do cinema quando as condições são de terror e medo. É um filme premonitório.”

Agrippino recebeu um diagnóstico de esquizofrenia nos anos 1980. Andava triste com a violência de telejornais e desenhos animados. Temia atravessar a rua. O mundo era violento. O primeiro surto poderia ser uma cena de “Hitler 3º Mundo”. Ele escreveu a palavra “danger” –perigo– na tela da TV de sua mãe, carregou o aparelho e o instalou no meio de um supermercado.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas