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Silviano Santiago

Dalton Trevisan, em seus contos, desaparece por desejo próprio

Antologia de textos escolhidos pelo curitibano faz saltar aos olhos um fascinante processo de amadurecimento

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Silviano Santiago

Crítico literário vencedor do prêmio Camões, é autor de "Uma Literatura nos Trópicos" e do romance "Machado", que ganhou o prêmio Jabuti de livro do ano

Rio de Janeiro

Há 70 anos sou leitor de Dalton Trevisan. Em 1953, ainda em Belo Horizonte, Jacques do Prado Brandão tinha a revista Joaquim na biblioteca que passei a consultar. Ela lhe chegava pelos correios, religiosamente. Guardava também alguns folhetos com contos do Dalton, editados no estilo cordel nordestino.

O escritor Dalton Trevisan caminha, discreto, pelo centro de Curitiba em maio de 2015 - Marco Rodrigo Almeida/Folhapress

Como provinciano em busca das luzes do mundo, intrigava-me o modo moderno e publicitário encontrado pelo escritor curitibano, bem cercado de futuras figuras da literatura e das artes. Ele fazia o seu material e o delas circular com grande eficácia por todo o Brasil, chegando aos velhos e aos novos. Saltava por cima do influente sistema editorial e livreiro da época.

O achado de Dalton me encantava e aos meus amigos. Daí a criação da revista Complemento, em 1955. Dalton ensina que, no Brasil, você pode (ou deve —escolham o verbo) ser "leitura" antes de ser "livro". Aliás, o Vampiro de Curitiba só será livro e autor estreante e premiado em 1959.

No pós-guerra, Dalton e os companheiros esticavam o estilingue provinciano e, pelos correios, então mais baratos e mais eficientes, atiravam a produção provinciana para todas as idades e todos os cantos do Brasil. Sem lenço nem documento, o contista era lido e conhecido no Brasil e talvez no exterior.

Em 2023, cai-me às mãos uma discretíssima "Antologia Pessoal", do mesmo Dalton, que coincide em discrição com a figura humana do autor, que foi desaparecendo do público à semelhança do contista gringo J.D. Salinger, também lido e apreciado na revista New Yorker antes de ser autor de livro.

Este jornal recebeu a antologia de contos, mas não receberá uma foto recente do contista. Não há por que não atar as duas pontas extremas do tempo que recobre minhas leituras de Dalton, 1953 e 2023.

A fruta está dentro da casca, fruta e casca se diferem no tocante à imagem pública do escritor. Salta aos olhos um fascinante processo de amadurecimento da escrita literária de Dalton Trevisan, não desprovido de extraordinários companheiros.

Um dado é seguro. Dalton não é pop. É o escritor que opta pela discrição. Opta de maneira mais firme que o poeta e o romancista que o segundam, João Cabral e Graciliano Ramos. Tão tamanha e difundida é a sua discrição, que, ao ser distinguido com o prêmio Camões, os jurados quiseram saber se ele o aceitaria, antes de divulgar a escolha à imprensa.

Em Lisboa, a dificuldade dos jurados foi a de ter em mãos o número de telefone do farmacêutico, seu vizinho, responsável pelas comunicações do escritor com a cidade e o mundo. Pela voz ao telefone do farmacêutico, Dalton aceitava de bom grado o prêmio.

Na análise de Graciliano, tenho insistido na conclusão de que nele se casam a experiência vital e a experiência estética. Dou como exemplo uma passagem das "Memórias do Cárcere": "Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período ─ riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de ideias obliteradas".

Há um amadurecimento do coração e das emoções cotidianas que se assemelha ao ato de escrever um período. "Riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões".

O verbo "borrar" é mais rico semanticamente do que pensa a bendita ignorância. O poeta Jorge de Sena conseguiu salientar o significado obsceno do verbo, "aliviar-se", no poema sobre Luís de Camões a arquitetar solitário "Os Lusíadas" numa praia deserta de Moçambique.

Há que citar estes versos de Sena, que talvez escandalizem: "Depois, aliviado, tu subias aos baluartes / e fitando as águas / sonhavas de outra Ilha, a Ilha única, / enquanto a mão se te pousava lusa [...]". Se não se escandalizaram, vale a pena ler todo o poema.

Essa natural e construtivista fisiologia da composição literária tem, em Dalton Trevisan, o mais discreto leitor da experiência do conto em literatura nacional, tal como proposta por Jorge Luis Borges.

No prólogo de "Ficções", o argentino constata o disparate de escrever romances longos na contemporaneidade: "Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma ideia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos".

Borges ousava sustentar a parcimônia do conto no interior da biblioteca de Babel: "Melhor procedimento é simular que esses [extensos] livros já existem, e oferecer um resumo, um comentário".

Essa poética minimalista da ficção, mero resumo ou comentário de obras que já existem, é evidentemente livresca. E será retomada pelo romancista americano John Barth, um admirador de Machado de Assis. Associando Borges e Samuel Beckett, Barth desenvolve teoricamente a ideia de o escritor contemporâneo trabalhar no circuito interno da "literatura da exaustão".

Com o correr dos anos Dalton endossa mais e mais o minimalismo a que Borges se refere, para nele inaugurar uma forma diferente de vampirismo. Vampirismo em nada exaustivo e em nada livresco. Transforma-se no vampiro da cidade que o trouxe à luz, onde cresceu, amadureceu e envelheceu, e de onde desaparece por desejo próprio.

Desaparece por uma escrita literária do conto que se empobrece, ao ponto de ambicionar ser um mero (ou um esplêndido —escolham o adjetivo) haikai.

Antologia Pessoal

Avaliação:
  • Preço: R$ 99,90 (448 págs.)
  • Autoria: Dalton Trevisan
  • Editora: Record

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