Contista maior, Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba, chega aos 95

Famoso por sua reclusão, escritor depurou ao longo das décadas uma linguagem inconfundível em textos cada vez mais breves

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Luiz Rebinski

Jornalista, é autor do romance ‘Um Pouco Mais ao Sul’

[RESUMO] Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba, chega aos 95 anos neste domingo (14) como o principal remanescente da grande tradição do conto brasileiro no século 20. Famoso por sua reclusão e pela mitologia criada em torno dela, o autor depurou ao longo das décadas uma linguagem inconfundível, que sintetiza a complexidade do homem em textos brevíssimos.

Dalton Trevisan chega aos 95 anos sozinho no olimpo do conto brasileiro. Depois das recentes mortes de Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna, outros dois mestres da narrativa curta, o autor curitibano figura como um dos últimos remanescentes do auge do conto brasileiro no século 20.

Diferentemente de seus dois ilustres colegas de ofício, que continuavam a produzir e publicar até as vésperas da morte, Trevisan parece ter dado como encerrada sua obra, pelo menos de forma oficial. A amigos próximos diz que continua escrevendo, mas não pretende mais publicar. Seu último livro de inéditos é “O Beijo na Nuca”, de 2014.

Trevisan lançou mais de 40 livros desde 1959, quando fez sua estreia oficial na literatura com a coletânea de contos “Novelas Nada Exemplares”. Até poucos anos atrás, mantinha a publicação de quase um título por ano, evento sempre aguardado com expectativa por seus leitores fiéis. Agora, a releitura da obra deve ser o caminho para os fãs do escritor.

Uma obra que tem em Curitiba não apenas um cenário, mas sua própria razão de existir. Trevisan pegou emprestado o nome da capital paranaense para construir um mundo próprio em dezenas de livros.

A relação lembra a do colombiano Gabriel García Márquez com a imaginária Macondo, embora a Curitiba de Trevisan, não menos fantasiosa, seja mais grandiosa, por paradoxal que pareça, por seu minimalismo, ainda que menos famosa que a criação de Gabo.

Talvez se a literatura do autor curitibano tivesse alçado voos mais altos em traduções de língua inglesa, como aconteceu com o realismo mágico latino-americano, ele poderia ser também Nobel de Literatura.

Mas Dalton Trevisan nunca foi propriamente movido pela fama, mesmo que seu ego inflado o tenha traído algumas vezes. Não é “apenas” um grande autor que seguiu fielmente um projeto literário, mas uma espécie de arquiteto da ficção, que além de cenários, personagens, tramas e climas criou também uma linguagem que conduz o leitor a um novo mundo.

Esse traço do artista não deixa de ser surpreendente. Dalton Trevisan, o homem, deu mostras de que nunca foi um entusiasta de seus pares ou da vida em sociedade. Viveu a maior parte do tempo isolado na famosa casa da rua Ubaldino do Amaral, no bairro Alto da Glória, em Curitiba.

Mesmo os poucos amigos têm acesso restrito à intimidade do escritor, que se mantém como um ermitão urbano. Há décadas ele rompeu com a maior parte da família, incluindo a única filha viva, Rosana. A mulher, Yole, morreu no final dos anos 1990. Desde então, Trevisan vive sozinho em seu casarão de aspecto descuidado, a poucos minutos do centro da capital paranaense. Por outro lado, parece ter sido essa reclusão que o ajudou a se estabelecer entre os maiores escritores de seu tempo —e não apenas do Brasil. De família rica, proveniente da Itália, desde muito jovem mostrava determinação em escrever.

Quando ainda era estudante secundarista, no tradicional Colégio Estadual do Paraná, criou uma revista chamada Tingui. Queria ser poeta, e de certa forma foi. Alguns de seus contos têm a lapidação de um bom poema. Mas, claro, sua carreira ficou marcada pelo conto.

Os anos 1940 foram movimentados para o jovem Trevisan, que lançou dois livros de modo independente, “Sete Anos de Pastor” e “Sonata ao Luar” (ambos depois renegados por ele), e criou a revista Joaquim (1946), que colocou Curitiba no mapa dos escritores e artista modernos do Brasil. Com 21 edições, a publicação durou até 1948 e até hoje se mantém como um marco dentre os cadernos literários feitos no país.

A revista também serviu para que nomes do primeiro time da literatura nacional, como Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga, soubessem da existência de Dalton Trevisan. Ainda assim, demorou mais de uma década, após o fim da revista, para que o escritor curitibano ganhasse realmente uma vitrine nacional. Isso só aconteceu com o livro “Novelas Nada Exemplares”, publicado em 1959 com o carimbo de uma grande editora, a José Olympio.

A obra lançaria as bases da literatura daltoniana: elipses, frases curtíssimas, clareza desconcertante e, no plano das histórias, gente comum que carrega toda a complexidade do ser humano. Ou, conforme diz um texto de divulgação de seu livro “Macho Não Ganha Flor”, personagens “primos tortos da barata de Kafka e do rinoceronte de Ionesco”.

Otto Maria Carpeaux, o temido crítico, fez severas ressalvas ao livro, mas terminou dizendo que Trevisan era “um observador atento da realidade”. Elogio um tanto genérico, mas ainda assim verdadeiro, como a carreira do autor provaria.

Depois disso, a trajetória do contista ganhou corpo; a cada novo livro, afinava mais e mais a inconfundível linguagem e os tipos inusitados que retratava. O relativo sucesso (mais de crítica que de vendas) foi sendo construído paralelamente ao mito do próprio autor.

Até que sua imagem de grande contista estivesse estabelecida, Trevisan circulou por diversas rodas de escritores e artistas, em Curitiba e em outras cidades. Depois disso, não mais. Ele se recolheu em um mundo idiossincrático, e os papos sobre cinema e literatura, seus temas preferidos, ficaram restritos a um círculo minúsculo de interlocutores.

Quanto mais sua reputação se solidificava, mais crescia o mito em torno de sua figura. “O Vampiro de Curitiba” (1965), livro de contos com estrutura de romance experimental, fez mais que alavancar a reputação de Trevisan como um dos mestres da narrativa curta. O título da obra tornou-se o apelido pelo qual o escritor passaria a ser identificado.

Essa mitologia certamente ajudou a fazer com que seu nome circulasse até em grupos de não leitores. Ele virou um personagem, criador e criatura, em um tempo em que ainda não se falava em marketing, muito menos na literatura.

E Trevisan parece ter gostado dessa publicidade às avessas, fomentada pelo próprio temperamento, e que lhe rendeu um lugar especial no cenário literário brasileiro. Por outro lado, sua literatura sem concessões fez dele um escritor considerado difícil para o leitor médio brasileiro. Isso se refletiu nas vendas de seus livros, modestas para um autor que caminha para o cânone da literatura nacional.

Mesmo entre seus pares, Trevisan parece um outsider. É respeitado, todos conhecem a mitologia em torno de seu nome e de sua figura, mas poucos autores parecem ter se debruçado sobre a sua obra. Dificilmente é citado como influência para os jovens escritores.

Seu séquito é restrito, mas especial. Nomes incontornáveis do conto brasileiro, como Luiz Vilela e Sérgio Sant’Anna, sempre declararam admiração por seu trabalho. Sant’Anna, morto no dia 10 de maio em decorrência do coronavírus, referia-se a Trevisan como o “maior escritor brasileiro vivo”. O mesmo dizia o gaúcho João Gilberto Noll, morto em 2017.

O sucesso entre os críticos se materializou em diversos prêmios, no Brasil e no exterior. Em 2012, em uma manhã fria de maio, o telefone da Redação do jornal literário Cândido, que eu editava, tocou logo cedo. Era o professor Alcir Pécora, que fazia parte do júri do Prêmio Camões daquele ano.

Ele procurava o contato de Trevisan para avisar que o escritor havia vencido o prêmio, o mais importante da língua portuguesa. Como não sabia, passei o número da Livraria do Chain, espécie de escritório informal do autor à época. Parece que não o acharam, mas a honraria foi entregue.

Com Curitiba, Trevisan mantém uma relação de amor e ódio. Nunca saiu da cidade por muito tempo. Seus embates com outros autores locais, como os simbolistas da primeira metade do século 20, ficaram célebres. Parece ainda detestar o provincianismo enraizado da metrópole repaginada, com particular ojeriza aos apelidos marqueteiros que a cidade ganhou na era Lerner.

Mas essa mesma “jequice” da urbe ordeira e “pacata” é o que o fez dedicar uma obra inteira a este lugar e a seu povo, por mais distorcidos que esses elementos apareçam em sua literatura.

O que leva a crer que a “Curitiba velha”, com todo seu atraso e pequenez, inspirou o escritor a produzir uma espécie de “A Comédia Humana” balzaquiana a partir das figuras caricaturais dos Joões e Marias.
Diferentemente de Balzac, porém, Trevisan vai contra o óbvio caminho que leva do conto à novela, conforme bem apontou há alguns anos a ensaísta Vilma Arêas. Ele vai para direção oposta, rumo à poesia e ao miniconto.

E essa é mais uma das idiossincrasias que tornam sua obra única. O escritor que um dia afirmou que “para escrever o menor dos contos, a vida é curta” colocou vidas inteiras em histórias brevíssimas.

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