Siga a folha

Descrição de chapéu
Olimpíadas 2024 LGBTQIA+

Direita e esquerda engasgam com 'A Última Ceia' nas Olimpíadas

Polêmica detonada na abertura com festa drag evocando Leonardo Da Vinci mostra que boa arte sobrevive a tudo

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Silas Martí

Editor da Ilustrada

Um grupo de homens se senta à mesa, todos do mesmo lado do móvel, em perfeito equilíbrio geométrico, seis à direita, seis à esquerda e o mais importante no centro, o homem, Jesus Cristo. Ele é o ponto de fuga da imagem, para onde todas as linhas convergem, e atrás dele os raios de sol que entram pela janela conferem à sua figura uma aura luminosa.

"A Última Ceia", obra-prima de Leonardo Da Vinci, ele também o cara, vem sendo lembrada como a vítima da vez, alvo da ciranda "woke" de progressistas identitários.

Numa das muitas cenas escalafobéticas da cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris, no final da semana passada, uma mulher gorda com uma tiara reluzente na cabeça, ladeada por drag queens, algumas pessoas trans e depois um homem quase pelado pintado de azul e uma criança, também parece comandar uma gigantesca mesa de jantar. Eles são 17 pessoas no total, não 12, como os apóstolos em volta de Jesus Cristo no momento em que ele diz que naquela sala há um traidor.

Performance com drag queens na abertura das Olimpíadas comparada à 'Última Ceia' - The Olympic Games no X

É a polêmica da vez num mundo cada vez mais dado a fabricar contendas vazias que incendeiam o debate público e as redes sociais. Teriam os organizadores das Olimpíadas querido insultar todos os cristãos com uma festa drag? Teriam eles parodiado a obra tão solene de Da Vinci? No tribunal digital, defensores e detratores da cena se engalfinham, fazendo quem não viu nada de chocante ali passar a duvidar do que viu e quem viu gritar ainda mais alto.

Os responsáveis pela performance no rio Sena já se pronunciaram dizendo que não. Não era um ataque aos cristãos nem à obra de Da Vinci. Era uma referência a Baco, o deus do vinho, e às festas pagãs do monte Olimpo.

Não importa. As intenções por trás de uma performance ou obra de arte não neutralizam as leituras que o público fará delas.

O mundo todo viu ali uma "Última Ceia" montada por corpos desviantes, que seriam expulsos da Bíblia e jamais apareceriam na iconografia religiosa encomendada aos renascentistas pelos ricos e poderosos da época, caso da obra de Da Vinci, um afresco no refeitório do antigo convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão.

'A Última Ceia', de Leonardo Da Vinci - Reprodução

O artista era ele mesmo um transviado, homossexual perseguido e preso então pelo crime de sodomia. Mas tinha contas a pagar e topou o "job" oferecido pelo duque da cidade, Ludovico Sforza.

Seu afresco mais célebre, da mesma maneira que todas as suas pinturas, é de uma harmonia sublime, a mais estável e bem construída arquitetura a emoldurar os comensais dispostos diante de nós na mais cristalina das composições, não fosse o abalo causado pelas notícias bombásticas de Jesus. Da Vinci, vejam, era apolíneo na atenção à beleza das formas; a festa das Olimpíadas se queria o oposto, a esbórnia dionisíaca.

Que em pleno século 21 estejamos há dias discutindo uma obra de arte do século 15 é talvez o único lado bom da história —ou mau, já explico.

Da Vinci, escreveu um crítico americano no site de cultura pop Vulture, teria adorado a festa para ele em Paris, cheia de gente que, como ele, talvez não fosse bem-vindo em certos círculos de poder e prestígio. Tendo a concordar que ele curtiria o fervo, longe da sisudez do jantar no convento que, sabemos, teria um desfecho terrível.

Outros artistas, muitos outros, aliás, já fizeram releituras mais ou menos espertas, mais ou menos ousadas, escandalosas, da "Última Ceia". O tableau vivant olímpico agora seria só mais uma, e das mais fracas, embora tenha tomado o cuidado de preencher todos os requisitos da cartilha "woke" e caprichado bem na inclusão de todas as infinitas letras da sigla LGBTQIA+.

O fotógrafo americano, também gay, David LaChapelle talvez tenha feito a melhor delas, mantendo um Jesus de ares angelicais no centro de sua composição, mas rodeando o filho de Deus com homens negros de roupa esportiva, um elenco que poderia ter saído de qualquer clipe de hip-hop da virada do milênio. LaChapelle juntou corpos estigmatizados em torno da figura de Cristo para dizer que, no fundo, estamos falando de amor ao próximo, sem ressalvas.

'Jesus is My Homeboy: Last Supper', fotografia de David LaChapelle - MAC-Lima/Reprodução

Que estejamos discutindo essas imagens ainda, em especial Da Vinci, centenas de anos depois, atesta que a boa arte sobrevive a tudo, nos constrói como seres humanos e nos distancia da barbárie. Que estejamos ainda no assunto mostra que talvez haja um esgotamento de ideias e referências que mergulha nossa cultura contemporânea num sem-fim de remakes, tortos, anódinos, bizarros, que seja, mas que não chegam aos pés dos originais.

Os raivosos, de autoridades católicas a figuras ilustres da novíssima ultradireita global, não perderam a chance de desfilar sua intolerância diante do mundo. A turma colorida da festa drag olímpica, por outro lado, não criou nenhuma obra de arte, só mostrou o que qualquer ser esclarecido entre nós deveria encarar como nada mais que a realidade plural do mundo.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas