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Bill Gates à Folha: Taxação de super-ricos é improvável, mas apoio

Para fundador da Microsoft, capitalismo é parte da solução de crises, apesar de ter criado desigualdade e problemas ambientais

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Eduardo Sombini

Doutor em geografia pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

[RESUMO] Em entrevista exclusiva à Folha, Bill Gates afirma que a inovação é essencial para mitigar o aquecimento global e que contribuir para o desenvolvimento de tecnologias verdes economicamente viáveis é o papel que busca desempenhar. O cofundador da Microsoft e filantropo, protagonista da nova série documental "What's Next?", defende que super-ricos paguem mais impostos, mas diz ver poucas chances de uma proposta de taxação global de bilionários, como a patrocinada pelo governo Lula (PT), se concretizar.

O tipo de pessoa que acredita que a inovação pode resolver tudo. Bill Gates se descreve dessa forma no primeiro episódio de "What’s Next?", série documental da Netflix protagonizada por ele, cofundador da Microsoft, filantropo e multibilionário —o quinto indivíduo mais rico do mundo, de acordo com a Bloomberg, com patrimônio estimado de US$ 161 bilhões (R$ 905 bilhões).

A aposta na tecnologia, afinal, sintetiza a biografia de Gates, personagem maior da revolução da informática nos anos 1980 e 1990 e, a partir da década seguinte, de uma nova era da filantropia.

Bill Gates em cena da série documental 'What's Next?' - Netflix/Divulgação

A Fundação Bill e Melinda Gates, criada em 2000, se tornou o emblema de organização privada com ambição global e musculatura financeira, que se traduziram, nesse caso, em pesquisas sobre doenças tropicais negligenciadas, como a malária, e em programas de planejamento familiar, saneamento básico e vacinação em países do Sul Global.

Gates também se tornou uma voz proeminente do debate sobre a crise climática e um dos maiores defensores da inovação tecnológica como chave para reformar a economia intensiva em carbono herdada do século 20.

Por meio da Breakthrough Energy, bilhões de dólares foram direcionados a startups que buscam reduzir a emissão de gases do efeito estufa atuando em setores como alimentação plant-based, combustível para a aviação, energia nuclear e produção de cimento, além de captura e armazenamento de carbono da atmosfera. Só na TerraPower, que iniciou, em junho, as obras de uma usina no Wyoming que promete pôr em operação um reator nuclear de nova geração, Gates investiu ao menos US$ 1 bilhão.

"É uma questão de nos concentrarmos nas inovações certas e ficarmos atentos à igualdade para que as pessoas pobres de todos os países, mas principalmente dos países pobres, recebam atenção", afirma Gates em entrevista à Folha, resumindo sua visão para enfrentar as grandes questões do presente.

O repórter questiona as razões do tecno-otimismo do cofundador da Microsoft. Ainda faz sentido contar com uma virada tecnológica desse porte para evitar o pior da catástrofe climática? Por que se manter otimista em 2024, que teve meses seguidos de quebra de recordes de temperatura da Terra, enchentes e secas devastadoras e alertas duros de cientistas, que suspeitam que o planeta está se aquecendo em um ritmo ainda mais acelerado que o previsto?

"Não há dúvida que a mudança climática causará danos significativos", responde Gates, por videochamada, em uma sala de conferência na sede da sua fundação, em Seattle. "Muitos desses danos, infelizmente, atingirão as pessoas mais pobres. A África sofrerá os piores impactos. Por isso, devemos mitigar o mais rápido possível."

Em intervenções públicas sobre o aquecimento global, Gates tem centrado seu discurso na necessidade de reduzir os prêmios verdes, o que se paga a mais por mercadorias e serviços limpos em relação aos existentes hoje. O alto custo inicial de novos processos produtivos que não emitem carbono impede que eles se tornem competitivos, o que impossibilita, por sua vez, que ganhem escala e venham a ser economicamente viáveis.

"Esforços de mitigação que são supercaros vão ser difíceis. Então, meu papel no trabalho com o clima é ajudar a impulsionar a inovação para que possamos nos tornar verdes, sem grandes custos", afirma.

Ou seja, seus investimentos em "climate techs" são desenhados para impulsionar o desenvolvimento de tecnologias neutras em carbono com algum potencial e permitir que as que se provem viáveis cheguem ao mercado. Ele também diz criar demanda diretamente ao abastecer seu avião com combustível sustentável ou compensar suas emissões, que reconhece serem altas, contratando os serviços da Climeworks, que opera na Islândia uma planta de captura de carbono da atmosfera.

Em sua avaliação, além da equação de custo, todo o resto é secundário para enfrentar a crise climática, como disse em uma entrevista em 2022: "Não há outra métrica que realmente conte além das emissões totais atuais e o progresso na redução dos prêmios verdes".

Este é um dos flancos preferidos de seus críticos: Gates se orienta, segundo eles, pela busca de soluções tecnológicas tópicas para problemas exponencialmente mais complexos, deixando de lado as engrenagens culturais, econômicas e sociais mais profundas que, em primeiro lugar, os criaram. Isso se aplicaria tanto à mitigação do aquecimento global quanto ao uso da inteligência artificial na educação e aos programas de empoderamento econômico de mulheres na África ou na Índia.

Gates também parece ter dificuldades para convencer outro tipo de interlocutor, os jovens preocupados com o futuro do clima do planeta. Um dos episódios da série destaca um encontro dele com ativistas que não encontram, na conjuntura atual, motivos para aplainar o ceticismo.

"Há uma parte do movimento com a qual não concordo totalmente, que é você denegrir a maneira atual de fazer as coisas antes de termos um substituto. Gostaria que houvesse a mesma ênfase no novo, mas, você sabe, sou um otimista", diz ele logo depois de uma ativista mencionar os lucros da indústria de combustíveis fósseis.

"Acho que o otimismo tem que vir de ações realistas. Se a gente ficar aqui sentado dizendo ‘uau, sou otimista’, isso é um contrasserviço. Há certos níveis de otimismo cego que podem ser uma forma de negacionismo climático", responde ela em tom pouco amigável, manifestando o desacordo a respeito da orientação e da velocidade da ação necessária.

"Alguns deles estavam realmente perdendo a esperança", afirma Gates à Folha, sugerindo acreditar que a conversa com os jovens ativistas rendeu frutos. "Acho importante que, em relação ao clima, a gente continue avançando e não perca a esperança, porque algumas dessas inovações podem fazer uma diferença enorme, embora não consigam eliminar o fato de estarmos levando ao aumento da temperatura."

O cofundador da Microsoft também se mostra otimista com os saltos que a inteligência artificial generativa vem dando, mesmo que a demanda por energia tenha aumentado e que corporações como Google e Meta tenham diminuído a ambição de suas metas de emissões devido à corrida pela IA.

"O que você verá nos próximos cinco anos é realmente positivo. Você terá um tutor pessoal e mais orientações sobre saúde, disponíveis 24 horas por dia. Descobriremos até mesmo como usar essas ferramentas de software para ajudar em questões como saúde mental, em que a escassez de pessoas [profissionais especializados] é muito, muito alta", diz Gates. "A produtividade extra ao longo do tempo, se for bem administrada, deve significar mais tempo de lazer. Isso é uma coisa fantástica."

O repórter pergunta o que Gates tem a dizer a quem argumenta que o próprio capitalismo nos trouxe até aqui e que, portanto, uma abordagem "business as usual" —defendida na série, aliás, pelo diretor-executivo da Breakthrough Energy— deveria ser substituída por uma regulação mais forte do Estado ou mesmo políticas de decrescimento.

"O capitalismo nos trouxe até aqui, onde a expectativa de vida média passou de 30 anos para 70 anos, a porcentagem de crianças que morriam antes dos 5 anos de idade passou de 30% para 5% e a oportunidade de aprender e viajar pelo mundo é muito diferente de cem anos atrás", responde Gates.

"Apesar de o capitalismo ter trazido muitos problemas, inclusive os problemas ambientais, também trouxe níveis de alfabetização e empoderamento sem precedentes. Hoje, se você contrair uma doença, se for mulher, se for gay —embora devesse ser melhor— é muito, muito melhor que era quando eu nasci."

Um país como os Estados Unidos, com seu patamar de riqueza, deveria fazer muito melhor em termos de políticas sociais, ele afirma no documentário. O que pensar, então, dos países do Sul Global, que vão precisar financiar políticas de adaptação à crise climática que devem demandar trilhões de dólares? Criar um imposto global sobre o patrimônio de super-ricos, como prevê a proposta patrocinada pelo governo Lula (PT) na presidência interina do G20, é uma boa ideia?

Gates ressalta que é um defensor de sistemas tributários mais progressivos, mas diz ver poucas chances de um arranjo com esse alcance ser implementado. "Não acho que haverá um imposto global porque não temos um governo global. Se houvesse uma votação sobre algo assim, eu votaria a favor, porque acho que precisamos arrecadar mais e financiar coisas relacionadas à desigualdade. Porém, acho que a realidade é que cada país terá de criar suas próprias políticas tributárias."

Ele apresenta um raciocínio semelhante a respeito da regulação da IA: "Cada governo, individualmente, precisa pensar sobre isso para seu sistema educacional, seu sistema de saúde e tirar proveito disso". Ao mesmo tempo, acena à ideia de aprofundamento da cooperação global no tema: "É preciso saber que muito disso está acontecendo além das fronteiras. Portanto, o fortalecimento e a renovação de esforços como os das organizações da ONU serão importantes para enfrentarmos as oportunidades e os desafios".

Gates, porém, não se mostra muito disposto a opinar sobre o que um governo específico, o brasileiro, vem fazendo. Quando a entrevista passava dos 13 minutos (o limite acordado era de 15 minutos), o repórter faz a última pergunta, sobre a política ambiental brasileira e a ministra Marina Silva, com quem o entrevistado se reuniu no último Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.

"O Brasil, você sabe, tem muitas coisas fantásticas. Quero dizer, usa cana-de-açúcar para produzir etanol, o que tem sido uma grande contribuição. É o guardião de uma das maiores florestas tropicais." Sobre Marina e a COP-30, que acontecerá em Belém: "O compromisso dela com essas questões ambientais é interessante. A COP que se aproxima em 2025 será muito importante em razão da liderança brasileira nessas questões."

Cada um dos cinco episódios de "What’s Next? The Future with Bill Gates", que estreia na Netflix em todo o mundo em 18 de setembro, aborda uma questão que pode ameaçar a sobrevivência da humanidade, ainda que os desdobramentos de cada uma delas não sejam totalmente conhecidos. Especialistas expõem seus pontos de vista, e Gates trava discussões com convidados como o médico Anthony Fauci, Bono, do U2, o cineasta James Cameron, diretor de "Avatar" e "Titanic", e a atriz e cantora Lady Gaga.

No quarto episódio, Gates fica sob os holofotes em um ângulo particular. A série se volta para as consequências da desigualdade de renda e põe em cena quem questiona a legitimidade da própria existência de bilionários, como Bernie Sanders, com quem Gates se encontra.

"Temos a situação obscena em que há três pessoas, sendo você uma delas, que possuem mais que a metade mais pobre dos Estados Unidos", diz o senador por Vermont, comparando a influência dos bilionários dos anos 2020 ao poder dos czares russos e dos reis da Europa de séculos atrás. "Eu não vejo um trono", provoca Sanders, olhando para Gates.

Já o senador republicano Mitt Romney, também convidado do episódio, exalta o dinamismo da economia norte-americana e defende que o crescimento é o elixir para tirar pessoas da pobreza, não sem deixar de concordar que o sistema tributário do país precisa de mudanças para "ajustar anomalias".

A filantropia é o pilar da imagem do cofundador da Microsoft há duas décadas —em "Whats’s Next", Gates verbaliza sem rodeios o caráter "ego-reputacional" da caridade.

Além de ter doado parte da sua fortuna para a fundação (US$ 59,5 bilhões até 2023), Gates coordenou em 2010, com Warren Buffett, o megainvestidor tratado como oráculo no mercado financeiro, uma campanha para obter o comprometimento de bilionários a destinar pelo menos a metade da sua riqueza para causas filantrópicas. Elon Musk, o cofundador da Oracle Larry Ellison e Mark Zuckerberg encabeçam, em ordem de patrimônio, a lista dos donos de fortunas que aderiram ao Giving Pledge, ao lado de Gates e Buffett.

Gates também é conhecido por defender o aumento da taxação dos mais ricos para financiar políticas públicas e lidar com as desigualdades crescentes nos Estados Unidos. "Os ricos deveriam pagar mais do que pagam atualmente, e isso inclui Melinda e eu", escreveu no seu blog no fim de 2019, manifestação semelhante à de outros bilionários, como Abigail Disney, neta do cofundador do estúdio de animação, que, mesmo diante da falta surpreendente de interesse de governos, não desistem de pedir para ser mais tributados.

Apesar do tamanho dos desembolsos de Gates para filantropia —ou precisamente devido a eles—, o tema se tornou o alvo mais frequente de seus críticos. Um dos mais incisivos, Tim Schwab conclui em "The Bill Gates Problem: Reckoning With the Myth of the Good Billionaire" que a fundação de Seattle não é mais que "uma ferramenta política e uma máquina de dedução fiscal e relações públicas".

O jornalista, ele mesmo criticado por sua retórica inflamada, afirma que a imprensa é complacente com Gates em razão do seu poder e que sua fundação não é escrutinada como deveria —já que recursos destinados à filantropia contam com incentivos fiscais nos Estados Unidos, Schwab defende que a organização preste contas ao público das suas atividades.

A grande questão, que deve reverberar mais que todo o resto da série em parte do público, é enunciada por Andrea Elliot, repórter do New York Times que, enquanto fala, é sintomaticamente interrompida pelo barulho de um helicóptero cruzando os céus de Manhattan ("deve estar indo para os Hamptons", afirma ela, em referência ao balneário da elite nova-iorquina).

"Ao doar sua riqueza, Bill Gates está essencialmente impondo a si mesmo um imposto sobre a renda e a riqueza", diz Elliot. "Ele deveria poder decidir o que fazer com seu dinheiro, e não o governo?"

A Fundação Gates desembolsou US$ 77 bilhões desde a sua criação, e Bill Gates não é nada como um Elon Musk, que ataca instituições democráticas mundo afora, espalha desinformação e potencializa discursos de ódio. Isso, no entanto, deve ser suficiente?

Bill Gates, 68

Nascido em 1955 em Seattle, no estado de Washington, fundou a Microsoft com seu amigo de infância Paul Allen depois de abandonar a graduação na Universidade Harvard. Dirigiu a empresa até 2000, ano de criação da Fundação Bill e Melinda Gates, organização filantrópica que atua em programas de acesso à tecnologia, redução da pobreza e saúde coletiva em países do Sul Global. Deixou a gestão cotidiana da Microsoft em 2008 e foi presidente do conselho da empresa até 2014. Em 2015, fundou a Breakthrough Energy, plataforma de investimento em tecnológicas para a transição energética com 165 empresas e US$ 3,5 bilhões em portfólio. Quinta pessoa mais rica do mundo, segundo o Bloomberg Billionaries Index, com patrimônio estimado de US$ 161 bilhões. Autor, entre outros livros, de "Como Evitar a Próxima Pandemia" e "Como Evitar um Desastre Climático".

What's Next? The Future with Bill Gates

Avaliação:
  • Quando: Lançamento global na Netflix em 18/9
  • Produção: Morgan Neville, Caitrin Rogers, Eve Marson
  • Direção: Jason Zeldes, Alex Braverman, Neha Shastry, Nicola Marsh, Morgan Neville

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