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Leonardo Avritzer

Identitarismo enfraquece capacidade política da esquerda

Grupos distorcem obra de intelectuais com tribunais em redes sociais e reduzem colonialismo a homem branco

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Leonardo Avritzer

Professor titular do Departamento de Ciência Política da UFMG

[RESUMO] A política identitária, rechaçada pela direita, afeta ainda mais as perspectivas de expansão da esquerda na sociedade, escreve autor, que argumenta que movimentos atuais se apropriam da obra de Michel Foucault e Edward Said aos fragmentos, usando noções equivocadas de luta contra formas injustas de poder.

Tem se desenvolvido no Brasil um paradoxo político em relação à ascensão das formas identitárias de política que pode ser enunciado da seguinte forma: a política identitária é fortemente atacada pela direita, mas o que ela prejudica, de fato, é a inserção e a expansão da esquerda na sociedade brasileira.

A esquerda não enxerga esse paradoxo porque sua proposta política está ligada a uma suposta afinidade eletiva entre alguns dos objetivos da política identitária, como a inclusão de negros e mulheres na política, na academia e em outras instituições culturais, e sua concepção de fundo acerca da inclusão e da pluralização da sociedade.

Protesto em Washington contra a suspensão do direito ao aborto pela Suprema Corte dos EUA - Jose Luis Magana - 14.mai.22/AFP

No entanto, tem escapado aos atores políticos de esquerda uma dimensão adicional: a tentativa de criar uma narrativa epistemológica na qual tanto a crítica ao eurocentrismo associada à apologia acrítica do pós-colonialismo quanto a crítica generalizada da ciência e dos homens brancos acabam assumindo a dimensão de um sectarismo essencialista e antipolítico que tem afetado a capacidade política da esquerda.

Entendo como esquerda uma orientação política centrada na preocupação com a desigualdade a partir de um entendimento de que sua redução implica impor limites à forma como o mercado distribui riqueza. Mas é importante ter em mente uma segunda dimensão, que denomino de organizacional, relacionada à percepção de que a esquerda apenas se torna hegemônica quando consegue ultrapassar politicamente as fronteiras de sua base política. Foi assim na Europa do pós-guerra e na América Latina na primeira década deste século.

Neste artigo, busco analisar a crise da esquerda desde os anos 1980 e 1990 e a maneira como a esquerda, a política do corpo e o anticolonialismo se conectam nas obras de Michel Foucault (1926-1984) e Edward Said (1935-2003).

Hoje, vemos proliferar na esquerda uma ideologia que parece ter muito pouco a ver com a obra desses autores, alvo de apropriações frequentemente equivocadas. A partir do que Foucault deixou escrito, ele dificilmente concordaria com a noção identitária de justiça, muito menos com os tribunais identitários das redes sociais e os processos de cancelamento. Said foi, ao mesmo tempo, um recuperador e um crítico da tradição colonial.

Diante disso, pretendo também mostrar que a apropriação da política do corpo e da crítica do colonialismo pelo identitarismo rompe com o objetivo político desses autores e, assim, bloqueia a tradição de esquerda.

A crise da esquerda

O projeto clássico de esquerda, que se consolidou no pós-guerra, esteve centrado nas organizações da classe trabalhadora e nos partidos comunistas e socialistas. O papel dos partidos comunistas na resistência ao nazifascismo, em especial na França e na Itália, e o da União Soviética em sua derrota marcaram o início do pós-guerra como um período de forte redução das desigualdades sociais na Europa e de ampliação do número de governos de esquerda na região, como mostrou o historiador Tony Judt.

Dessa forma, houve uma integração entre dois princípios que nortearam a política do pós-guerra: de um lado, a ideia de justiça centrada em uma organização política, o partido comunista; de outro, a concepção de igualdade social ampla baseada no Estado. Esse projeto começou a naufragar com a intervenção da URSS na Hungria, em 1956, e entrou completamente em crise com a invasão da Tchecoslováquia pelos soviéticos, em 1968.

Um intelectual balizou a forma como a Europa reagiu aos dois episódios: Jean-Paul Sartre (1905-1980), que se tornou o líder intelectual inconteste da esquerda europeia ainda em 1945. Em 1948, o francês foi criticado pela URSS, que tentou impedir que proferisse uma palestra em Helsinque, então sob forte influência soviética. No mesmo ano, Sartre também foi colocado em uma lista de vetos do Vaticano por motivos completamente diversos. Para a Santa Sé, ele era um "denegridor inveterado, um blasfemista, um homem com uma visão perniciosa e venenosa, um claro corruptor da juventude", conforme registrou István Mészáros.

Sartre simbolizou um projeto europeu muito específico que conectou igualdade política e liberdade moral nas décadas de 1950 e 1960. Esse projeto fortaleceu a esquerda no pós-guerra, cruzou o Atlântico e se expressou nos Estados Unidos de uma forma diferente e extremamente relevante, associando esquerda e igualdade racial.

Sartre não condenou a invasão soviética da Hungria e, ainda em 1956, declarou que o marxismo constituía "a filosofia do nosso tempo". Porém, o expansionismo antidemocrático da União Soviética acabaria por afetar decisivamente a esquerda europeia. Sartre, então, foi se afastando completamente do marxismo até renegá-lo.

Uma tradição política não termina porque um pensador desiste dela. A maneira como Sartre e os intelectuais franceses puseram fim à tradição marxista não representou o fim da política de esquerda na França, uma vez que havia um continuador óbvio. Penso que esse papel não foi desempenhado por Perry Anderson ou Susan Neiman, mas por Foucault.

Do marxismo a Foucault

Apesar de alguns autores terem defendido que o colapso da União Soviética representaria o fim da esquerda ou o fim da história, o que ocorreu foi um forte deslocamento naquilo que passou a constituir as preocupações fundamentais dos atores de esquerda no pós-Guerra Fria.

Dois autores simbolizaram esse deslocamento ao colocar questões que passaram a ser a agenda fundamental da esquerda nas últimas décadas: o filósofo francês Michel Foucault e o crítico literário palestino Edward Said. No entanto, o interessante está na maneira como as políticas identitária e pós-colonial se apropriaram dos dois autores, substituindo a parte pelo todo.

Foucault começou sua vida política como membro do partido comunista francês e discípulo do filósofo estruturalista Louis Althusser e, logo em seguida, abandonou ambos. Em um dos centros de suas preocupações intelectuais, há um debate nítido com o marxismo: a questão sobre o entendimento do poder.

Para Foucault, o poder não deve ser compreendido concentrado em uma questão ou em uma estrutura, tal como a teoria e a filosofia política pensaram, de Hobbes a Marx, mas diluído por diversos campos da sociedade. Para entender esses diversos campos, é indispensável o que Foucault chamou de genealogia do poder, isto é, um diagnóstico das relações entre o poder, o conhecimento e o corpo. Aqui reside o ponto fulcral do que será uma revolução de paradigma: o poder não se concentra apenas no Estado ou no capitalismo, é também uma constelação discursiva.

Essa constelação discursiva não pode ser entendida a partir de um conceito de história uniforme, como Marx pensou em obras como "Manifesto Comunista". Ao contrário, ela deve ser buscada em formas não uniformes de manifestação. A história deve perceber os indivíduos em constante movimento no que diz respeito à verdade, à beleza e, principalmente, ao próprio corpo.

Essa constelação discursiva está em muitos segmentos da obra do autor, principalmente em um texto sobre o corpo e a sexualidade. Em "História da Sexualidade", um dos pontos importantes levantados por Foucault, contra toda a historiografia anterior, está relacionado à chamada era vitoriana não ter sido marcada pela ocultação da sexualidade, mas por sua explicitação. Com isso, Foucault rompeu a demarcação geralmente aceita entre fala e silêncio ou entre lícito e ilícito e procurou mostrar como as diferentes instituições tratam o sexo.

O filósofo francês Michel Foucault - Reprodução

Entre quem entrou em cena para discutir e classificar o sexo, se encontram naturalmente a medicina e a psiquiatria, na interseção entre disciplina e conhecimento. É esse o campo em que Foucault pretendeu associar as ideias de poder e de verdade. Ele quis mostrar que o poder não é só um lugar e não se concentra apenas no Estado, mas em todas as formas de classificação que criam algum padrão de injustiça em relação a práticas reais dos indivíduos.

É dessa ideia de poder que emerge uma concepção de justiça, que também é diferente daquela proposta pelo marxismo e pela esquerda. A justiça é a capacidade de fazer com que práticas ligadas ao corpo não sejam nem classificadas nem reprimidas.

Não existe qualquer espaço para dúvidas sobre se Foucault de fato apresentou uma teoria qualitativamente diferente do marxismo, à medida que ele deslocou o problema da tomada do poder com uma visão de justiça baseada nos interesses de um ator social —no caso, a classe trabalhadora— para uma concepção na qual o exercício de certas liberdades, especialmente no campo sexual, se torna possível.

A apropriação que alguns movimentos identitários fazem da obra do autor é decididamente parcial e frequentemente equivocada. Se Foucault teve como intenção ampliar, na direção sexual, as diferentes discussões sobre poder e dominação com o objetivo de criar novas dimensões de emancipação ou, pelo menos, de autonomia individual, os movimentos identitários transformaram essa intenção muito mais em um processo individual de busca de identidades pela via da demarcação.

Ao mesmo tempo, os movimentos identitários criaram agendas que não passam pela busca de concepções amplas e multifacetadas de justiça, mas por uma identificação individualista e simplista da afirmação de identidades sexuais como forma de justiça.

Como resultado, temos uma perda, no campo da esquerda, da noção de luta contra as formas injustas de poder e de justiça, substituída por diferentes ações de afirmação identitária que podem ser entendidas como pós-justiça —sempre centradas na linguagem, não na ação social.

Edward Said

Edward Said se tornou, entre as décadas de 1970 e 2000, um dos autores fundamentais para repensar a esquerda a partir de uma contribuição central: a revalorização da tradição conhecida como colonial ou decolonial. Nascido em Jerusalém, com doutorado em Harvard e professor da Universidade Columbia, ele se tornou o crítico mais profundo da literatura ocidental, em especial da visão do Oriente ou do colono nessa literatura.

No seu livro mais conhecido, "Orientalismo", o autor buscou mostrar que o Oriente foi uma invenção do Ocidente destinada a designar o outro pejorativamente, à medida que os elementos comuns entre o Japão, a Arábia Saudita e a Índia não eram mais significativos que suas diferenças ou as semelhanças de cada um deles com países ocidentais.

Contudo, o ponto central da tradição que Said inaugurou é a crítica da invenção do Oriente como "um lugar de seres exóticos, memorais e paisagens assombrosas e experiências singulares". Com "Orientalismo" —mas também em suas "Reflexões sobre o Exílio", em que resgata da literatura europeia a figura do latino-americano—, o autor inaugurou uma pedagogia de reconhecimento e de valorização do outro que teve consequências políticas profundas, à medida que tanto a política no não Ocidente quanto a ideia de formas de conhecimento poderão ser entendidas de outra maneira.

Desde "Orientalismo", há na obra de Said, portanto, uma tentativa de mudar a maneira como o Oriente é visto —e, mesmo tratada em termos literários, essa mudança tem fortes consequências políticas. Em "Reflexões sobre o Exílio", Said critica a visão do pensamento liberal ou de esquerda de que países do Terceiro Mundo "sofram de feridas autoinfligidas, sendo eles mesmos seus principais inimigos".

Assim, dois aspectos são fundamentais na obra do autor: uma crítica do Ocidente, que ele remete às ações coloniais da Grã-Bretanha e da França, e uma tentativa de revalorizar as formas culturais do Oriente —aqui cabe um conjunto mais amplo daquilo que se denomina Ocidente.

O método utilizado por Said para pensar esse imbricamento entre cultura e política implicou em não operar dualisticamente, como têm feito muitos dos seus discípulos e dos defensores do que se chama decolonial. Pelo contrário, a recuperação exitosa que Said fez do pensamento colonial ou pós-colonial se articulou com múltiplas referências próprias do Ocidente na filosofia e na música.

Edward Said em sua sala na Universidade Columbia, em Nova York, em 1998 - Ruby Washington - 9.jul.98/The New York Times

O objetivo de Said, como ele mesmo colocou, é mostrar que os autores não são mecanicamente determinados por ideologia, classe e história econômica. Ainda mais importante é sua afirmação de que o imperialismo, tanto no século 19 quanto no 20, avançou em conjunto com a resistência ao imperialismo, "o que não exime os povos colonizados da crítica. Qualquer análise mínima dos países pós-coloniais revela os acertos e os erros do nacionalismo". Ou seja, na obra de Said, não existe dualismo ou "nós versus eles", como tampouco houve qualquer descarte de autores ocidentais na construção de seu modelo de análise.

Temos, assim, uma obra literária com profundas implicações políticas, mas que tem sido interpretada de forma completamente equivocada pelo movimento que chamamos de esquerda identitária.

Alguns elementos têm sido desprezados pelos supostos continuadores decoloniais do pensamento de Said. O primeiro deles é a visão sobre o homem branco em sua obra. Para o autor, o homem branco é o colonizador europeu da África e da Ásia.

Said escreveu que ser um homem branco nas colônias significava deter "uma forma de autoridade perante os não brancos e mesmo dos brancos se esperava que se curvassem a ela. Na forma institucional que ela assumiu (governos coloniais, corpos consulares, estabelecimentos comerciais), ele constituía uma agência para a expressão, difusão e implementação de uma política em relação ao mundo [...]. Ser um homem branco constituía uma maneira concreta de estar-no-mundo".

O identitarismo naturaliza e essencializa a concepção de homem branco de Said. Assim, Marx, Gramsci, Sartre e Foucault não são mais que brancos privilegiados.

Ao separar a política do corpo da política de esquerda e ao hipostasiar a ideia do homem branco colonial como forma geral do homem branco, o identitarismo assume uma posição inversa à desses atores, que estabeleceram um diálogo produtivo com a esquerda e o marxismo para ampliar a categoria dominação, a situando além do poder do Estado e do capitalismo.

O identitarismo rompe com a tradição de esquerda e não consegue substituí-la por nada mais que um corporativismo epistemológico de ex-dominados que rompe com quaisquer critérios de justiça e igualdade.

A identificação do identitarismo com o pensamento e a prática política de esquerda parece rompida porque o elemento central da política de esquerda é a possibilidade de formação de maiorias entre dominados e não dominados, de forma a consolidar um conceito amplo de justiça no qual o passado pode ter um peso limitado, mas não pode jamais substituir o presente e o futuro.

O identitarismo é uma teoria equivocada do presente na qual só o passado tem peso e nenhuma proposta de futuro comum é apresentada. Esse é o caminho para o isolamento e para a derrota do pensamento de esquerda.

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