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Segundo turno no Uruguai decide mudança de pêndulo ideológico

Eleição de candidato de centro-direita trará volta de clãs familiares ao poder e jogará Frente Ampla para a oposição

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Montevidéu

Dois milhões e setecentos mil uruguaios são esperados nos centros de votação neste domingo (24) para escolher quem será o próximo presidente do país. 

O favorito, segundo as pesquisas de intenção de voto mais recentes, é o centro-direitista Luis Lacalle Pou, 46, que tem de 5 a 7 pontos percentuais de vantagem sobre o centro-esquerdista Daniel Martínez, 62

Mas o número de indecisos (6%) e dos que dizem votar em branco ou nulo (5%) ainda joga dúvidas sobre o resultado.

Se Lacalle Pou vencer, o pêndulo ideológico e político do país mudará de sentido e se voltará a setores tradicionais. 

O candidato do Partido Nacional, Luis Lacalle Pou, discursa em comício em Maldonado, no Uruguai - Mariana Greif - 19.nov.19/Reuters

Seu partido, o Nacional (Blanco), foi fundado em 1836, carrega ideologia liberal e é voltado aos interesses do campo —diferenciando-se de seu rival, o Colorado, mais urbano. 

No partido Nacional há mais de uma linha de pensamento, e Lacalle Pou pertence à que se mostra a favor do livre mercado e é permissiva em relação a costumes —foi de sua autoria, aliás, o primeiro projeto de lei apresentado para a regulamentação da maconha.

A vitória traria, ainda, o retorno de clãs familiares ao poder. Se ganhar, Lacalle Pou será o terceiro filho de um presidente a se eleger para o cargo. 

Seu pai é Luis Alberto Lacalle, que governou o Uruguai entre 1990 e 1995. Os outros dois pares de pai e filho que comandaram o país pertencem ao clã dos Batlle, da linha fundadora do Colorado.

Uma vitória de Lacalle Pou também jogaria a Frente Ampla para a oposição, onde esteve desde sua criação, em 1971, até 2005, quando finalmente chegou ao poder, rompendo o binarismo entre “blancos” e “colorados”, com a primeira eleição do atual presidente, Tabaré Vázquez, 79. 

O candidato pela Frente Ampla, Daniel Martínez, em evento de campanha ao lado de sua companheira de chapa, Graciela Villar, em Florida, no Uruguai - Mariana Greif - 20.nov.19/Reuters

A Frente Ampla reúne o Partido Socialista, ex-guerrilheiros Tupamaros e legendas menores, de trabalhadores, além de organizações sociais e de defesa de direitos humanos. 

“Se de fato se confirmar no domingo a vitória de Lacalle Pou, a Frente Ampla sairá com saldo positivo de ter mantido o crescimento econômico e a estabilidade do país por quase 15 anos”, diz o cientista político Daniel Chasquetti, da Universidad de la República, em Montevidéu.

"Também ajudou a harmonizar os traumas que haviam dividido a sociedade uruguaia durante a ditadura militar [1973-1985].”

Nos atos de encerramento de campanha, os dois candidatos foram atrás dos últimos votos que ainda não têm destino.

Lacalle Pou, em Canelones, reforçou que, com a aliança feita com outros cinco partidos —entre os mais importantes, o Colorado e o Cabildo Abierto—, terá maioria simples no Congresso.

No primeiro turno, quando se definiu a nova Assembleia Geral, a Frente Ampla elegeu mais deputados e senadores, mas o arranjo dos partidos de oposição, se for mantida, dará maioria a essa coalizão.

Entre as principais propostas de Lacalle Pou estão modernizar a administração estatal, promover mais acordos internacionais por meio do Mercosul, reduzir a carga impositiva dos produtores rurais e fazer mais investimentos em segurança —com mais policiamento nas ruas e uma revisão do código penal de 2017, que reduziu penas para delitos menores.


Os presidentes do Uruguai desde a redemocratização

Partido Colorado - atualmente une alas de centro-direita e de centro-esquerda

Partido Nacional - Centro-direita, liberal

Frente Ampla - Coligação que une legendas de esquerda e de centro-esquerda

Julio María Sanguinetti (Colorado) - 1985-1990  
Em seu governo, foi aprovada uma anistia e medidas de ajuda às vítimas do regime 

Luis Alberto Lacalle (Nacional) - 1990-1995 
Realizou privatizações, fez um ajuste fiscal que aumentou impostos e facilitou a importação de produtos

Julio María Sanguinetti (Colorado) - 1995-2000 
Fez um governo de coalizão com o Partido Nacional, realizou reformas liberais e ampliou a proteção social

Jorge Batlle (Colorado) - 2000-2005 
Período foi marcado por uma forte crise econômica, que teve corrida a bancos e saques a supermercados. Aproximou o país dos EUA

Tabaré Vázquez (Frente Ampla) - 2005-2010 
Ampliou programas sociais, tomou medidas para incluir as mulheres no governo e fez uma reforma tributária. O aborto foi liberado

José Mujica (Frente Ampla) - 2010-2015
Em seu governo, o Estado assumiu a produção e a venda de maconha aos usuários

Tabaré Vázquez (Frente Ampla) - desde 2015 
Defendeu a neutralidade do país sobre a situação na Venezuela. Defensor de medidas contra o cigarro e não fumante, teve diagnóstico de câncer no pulmão em agosto de 2019


Questionado sobre os avanços em direitos civis, como a lei do aborto, da regulamentação da maconha e do matrimônio igualitário, alcançados durante os governos da Frente Ampla, que não haverá retrocessos nessa área.

Já Daniel Martínez mostrou-se, em seu último ato público, um pouco menos animado. No centro de Montevidéu, chegou a admitir a hipótese de ir para a oposição.

Algo curioso no Uruguai, outros membros do atual governo e figuras históricas do partido vêm fazendo o mesmo, ainda que com uma diferença não tão grande entre os dois candidatos.

O ex-presidente e hoje senador José “Pepe” Mujica e o ministro da Economia, Danilo Astori, também admitiram que, caso necessário, farão parte de uma “oposição construtiva” ao novo governo.

Martínez, no entanto, pediu o voto dos eleitores indecisos, lembrando que o Uruguai, com a Frente Ampla, havia se transformado num “oásis de certezas”, devido à estabilidade política e econômica, e que isso seria colocado em risco com a vitória do adversário.

As críticas de Martínez dirigiram-se, também, para a coalizão que Lacalle Pou lidera e que possui entre seus membros um partido de direita mais radical, o Cabildo Abierto.

Este, liderado pelo ex-general Guido Manini Ríos, carrega discurso de mão de ferro contra o crime e é fortemente contrário à chamada “ideologia de gênero”.

Martínez disse, referindo-se a Manini Ríos: “Tenho medo de que terminemos como o Brasil”, fazendo referência discreta Jair Bolsonaro.

“Não está claro o que representará Manini Ríos na política uruguaia ainda. Num governo de Lacalle Pou, apesar de participar da aliança, não creio que terá influência para colocar sua agenda direitista em voga”, afirma Chasquetti. 

“Mas a possibilidade de que, nas eleições seguintes, ele tenha um músculo político mais forte para ser um presidenciável viável deve ser considerada.”

No primeiro turno, Manini Ríos teve 10% dos votos, o que não é pouco para um novato.

Ganhe Lacalle Pou ou Martínez, o Uruguai a ser conduzido está em dificuldades. Não são tantas quanto as de vizinhos da região, mas o país lida com estagnação econômica, depois de crescer uma média de 4,1% entre 2003 e 2018.

A projeção de crescimento do PIB para este ano, de 0,6%, é pífia. Houve, também, a perda da estabilidade fiscal, e o Uruguai termina o ano com um déficit de 5% do PIB.

Num cenário assim, um dos desafios é manter certas conquistas da Frente Ampla, como a redução da pobreza de 32,5%, em 2006, para 8,1%, em 2018.

Mudança de governo pode marcar guinada na política externa

Talvez uma das mudanças mais significativas que poderão ocorrer no Uruguai com Lacalle Pou será seu comportamento dentro da geopolítica regional, em especial em relação à crise venezuelana.

Nos últimos anos, o Uruguai se recusou a apoiar sanções ou a pressionar mais duramente a cúpula do país caribenho. 

Mais afinado com o México neste tema, e agora com a Argentina do presidente eleito Alberto Fernández, o Uruguai sob a gestão de Vázquez pregou o respeito à soberania venezuelana. Tampouco se refere ao regime de Nicolás Maduro como uma ditadura.

Se o vencedor da eleição for Martínez, ele já afirmou que essa posição não mudará.

Caso Lacalle Pou saia vitorioso, o candidato afirma que o Uruguai integrará o Grupo de Lima e respaldará a pressão do conjunto de países para que Maduro deixe o poder.

Já no Cone Sul, ainda está incerta qual seria sua relação com o governo brasileiro. Lacalle Pou se recusou a receber o apoio de Bolsonaro.

“O Uruguai, por sorte, não decide o que os brasileiros pensam, decide apenas o que acontece e o que precisam os uruguaios”, disse o candidato à época.

Ainda assim, ideologicamente, está mais alinhado ao brasileiro por ser a favor de flexibilizar as regras de comércio do Mercosul com outros países.

Em relação ao futuro governo argentino, apesar das demonstrações de preferência pela candidatura de Martínez, Fernández não fez alarde do apoio. Questionado como seria a relação da Argentina com o Uruguai caso Lacalle Pou seja vencedor, Fernández disse que “nada mudará”.

Uma questão regional que deve seguir complicada é a situação na Bolívia. O atual governo não reconheceu a autoproclamada presidente Jeanine Añez.

O chanceler de Vázquez, Rodolfo Nin Novoa, disse que era grave que o Congresso não tivesse aprovado, pelo voto, nem a renúncia de Evo Morales nem a posse de Añez.

Se o vencedor do pleito for Martínez, esse posicionamento deve ser mantido. Mas Lacalle Pou pode respaldar Añez.

Afinal, é assim que pensa o colorado Ernesto Talvi, terceiro colocado na disputa do primeiro turno e que deve ser o chanceler de um provável governo de Lacalle Pou.

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