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'Cultura apocalíptica da América Latina atrapalha na pandemia', diz historiador

Para italiano Loris Zanatta, raiz católica impede países de serem pragmáticos

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Buenos Aires

Países com governos neoliberais, como Chile, Peru e Colômbia, terão mais facilidade para entrar na nova normalidade depois da pandemia do novo coronavírus do que os comandados por populistas, como México, Argentina e Brasil, segundo o historiador italiano Loris Zanatta, 58.

Um dos mais importantes especialistas em América Latina, que se transformou no novo epicentro da crise sanitária, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, Zanatta é autor de obras sobre populismo e religião como "La Internacional Justicialista" e "Del Estado Liberal a la Nación Católica" (ambos sem edição no Brasil).

O historiador italiano Loris Zanatta em Buenos Aires, na Argentina - Xavier Martín - 15.set.2017/Folhapress

Em entrevista à Folha, por telefone, o professor da Universidade de Bolonha diz que a tradição católica de países como Itália, Espanha e os da América Latina pode ser um entrave no enfrentamento da crise sanitária.

Em que a reação da Europa ao coronavírus se parece com a da América Latina? Na Itália, as coisas foram parecidas ao que está acontecendo na América Latina. Como aqui [na Europa] aconteceu antes, agora estamos vendo as consequências desastrosas que foi ter fechado tudo. Estamos reabrindo, e os negócios mais fracos desapareceram. Também caiu a arrecadação do Estado, e há greves. Por isso, creio que quem diz que vai cuidar da saúde e não se importa com a economia, para mim, não de direita nem de esquerda, é apenas tonto.

A semelhança tem a ver com tradição cultural? Sim. Em países como Itália e Espanha, que têm uma cultura política tão parecida a dos latino-americanos, o debate se deu em termos moralistas, como está ocorrendo na América Latina. Em nossas culturas de origem católica, há uma tradição de pensar que o dinheiro é algo sujo, que não se deve falar de economia, pois primeiro vêm a vida e a saúde.

É uma retórica hipócrita, ainda mais na América Latina, onde muita gente vive de estar na rua ou não tem casa para fazer a quarentena.

O senhor acha que a religião está por trás das reações ao vírus, de forma geral? Sim, sempre está. É um dos elementos, ainda que não explique tudo. Os países do norte da Europa são mais pragmáticos do que a Itália e a Espanha, e muito por conta de sua origem religiosa. Desde o princípio, eles tentaram equilibrar os dois elementos.

Enquanto na Itália fechamos tudo, na Alemanha os setores fundamentais da economia ficaram abertos, como a indústria do aço e a automobilística. Os países que não fecharam toda a economia fizeram mais testes e atuaram mais na prevenção. Agora estão com problemas menores do que nós, tanto no balanço de mortos quanto na recuperação da economia.

É neste ponto que a cultura política e as raízes religiosas fazem uma diferença, porque é um momento em que a escala de valores de uma sociedade mostra-se fundamental.

Como está vendo a América Latina diante da pandemia? Assim como a Europa latina, a América Latina, com sua raiz católica, vê o trabalho e a economia como algo moralmente infectado e sujo. Essa cultura é um obstáculo que nos impede de ser pragmáticos.

Não podemos enfrentar uma epidemia no ano de 2020 como fazíamos nas pestes da Idade Média, fechando tudo e gritando: "Salve-se quem puder". Somos sociedades mais complexas e deveríamos ter instrumentos mais flexíveis.

A cultura latina é muito apocalíptica. Se você questionar um pouco mais as argumentações de alguém como [o presidente argentino] Alberto Fernández, o sentido do que está dizendo é que "somos os culpados" e que "Deus nos está castigando". O que ele está dizendo é que temos de expiar nossos pecados e, se conseguirmos, amanhã talvez sejamos melhores. Assim é fácil encantar seus seguidores com o discurso da quarentena, porque parece que a doença é um castigo justo e devemos oferecer nossa cota de sacrifício.

Há sempre a ideia de culpa por trás. Sim, sempre a culpa a amarrar nossa cultura. E a ideia de uma redenção pela via do sofrimento. A narrativa com que os latinos se identificam tanto é a que devemos expiar nossa culpa, para que amanhã tenhamos um mundo melhor e mais solidário que superaria o capitalismo.

Mas isso é errado, sabemos que não vai ser assim. O mundo pós-pandemia será um drama, será mais pobre e dificilmente menos egoísta.

O senhor acha que a pandemia pode impactar a democracia na América Latina? Vai depender da institucionalidade e do poder da economia de cada país. Cada sistema institucional se baseia em um equilíbrio entre Estado e sociedade. Os países com história mais equilibrada dessa relação sofrem menos risco de que o autoritarismo surja na figura de uma pessoa que aproveite para monopolizar o poder.

Não vejo um perigo para a democracia, por exemplo, no Chile. Quando terminar a pandemia, voltarão as manifestações, haverá o plebiscito pela Constituição, os atores políticos estarão lá, nada vai desaparecer. Porque o Chile é um país onde a sociedade é ativa e, portanto, o governo fica limitado.

O mesmo ocorre, em menor medida, no Uruguai, no Peru e na Colômbia.

E onde isso não acontece? Onde já não acontecia, o vírus não cria nada novo. Países como México, El Salvador, Bolívia e mesmo a Argentina correm o risco de um recrudescimento do autoritarismo.

São países em que o equilíbrio entre Estado e sociedade sempre foi ruim. Ali, o poder esteve sob forças como o caudilhismo do PRI [Partido Revolucionário Institucional, que governou o México por 70 anos], o peronismo, a longa gestão de Evo Morales [na Bolívia]. Esses projetos tinham a ambição de ocupar todo o Estado. Nesses países, sim, há um risco contra a democracia. Vejo um risco grande no México, pois [o presidente Andrés Manuel] López Obrador é o tipo de líder que aposta numa base plebiscitária, uma relação direta com o "povo", menosprezando as instituições.

Nesses países, há também a possibilidade de levantamento da sociedade. Porque o Estado tem grande papel, e ao mesmo tempo é ineficiente, incapaz de solucionar crises. Aí podem surgir greves, tensões, e mesmo violência social.

As críticas ao modelo neoliberal, por trás dos protestos de 2019, teriam de ser revistas? Sim, diria que é preciso ter cuidado com esse ataque ao neoliberalismo. Porque, mesmo com a expansão da pandemia, nota-se que países como Chile, Peru e Uruguai terão mais facilidade em transitar para a nova normalidade porque têm as instituições mais sólidas e uma economia mais em ordem. Diferentemente do México, do Brasil e da Argentina, com governos mais populistas, e cuja inserção na nova economia global será mais difícil.

A pandemia tem sido um termômetro que nos mostra que aqueles que tinham construído uma casa mais ou menos sólida, em termos de institucionalidade e de equilíbrios econômicos, têm mais chance de sair dessa crise melhor.

Nesse contexto, como vê o Brasil? O Brasil tem um presidente perigoso, e isso é inquietante para a região. Mas o sistema institucional do Brasil sempre teve um equilíbrio. É um país em que o poder moderador ainda existe. Creio que [o presidente Jair] Bolsonaro, se continuar assim, vai ter um fim parecido ao [dos ex-presidentes Fernando] Collor ou Jânio Quadros. Elementos muito estranhos, muito loucos, sempre acabam sendo expulsos do sistema institucional do Brasil.

E a Argentina, que está indo relativamente bem no combate ao vírus, mas está perto de uma nova moratória? Não entendo como a Argentina crê que alguém vai querer lhe emprestar dinheiro novamente, porque fazer isso será jogar dinheiro no lixo. Peru e Colômbia têm uma dívida pública que não passa de 20% do PIB [Produto Interno Bruto], portanto com margem para manobrar no período pós-pandemia.

Haverá drama em todos esses países, o Peru tem muitos problemas, de corrupção e de desigualdade. Mas sua economia se abriu, se fortaleceu. Isso contará muito.

Como é possível que o governo da Argentina esteja falando de protecionismo, acreditando que a globalização vai terminar? É uma loucura. A globalização diminuiu hoje, por conta do coronavírus. Mas se há algo certo com relação ao futuro é que o mundo vai ser mais globalizado ainda. Os países que pensarem em sair disso, como a Argentina, vão perder.


Loris Zanatta, 58

Historiador italiano, é professor da Universidade de Bolonha e autor de "La Internacional Justicialista" e "Del Estado Liberal a la Nación Católica", entre outros livros.

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