Vistos gold em países da Europa perdem o brilho em meio a crises locais

Programa atraiu bilhões de euros de investidores imobiliários, mas agravou crise habitacional para moradores nativos

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Liz Alderman
The New York Times

Quando Ana Jimena Barba, uma jovem médica, começou a trabalhar em um hospital em Madri no ano passado, mudou-se para a casa dos pais a meia hora da cidade até conseguir economizar o suficiente para comprar sua própria casa. Mas quando começou a procurar casas na mesma vila, quase tudo estava com preços acima de € 500 mil (mais de R$ 2,7 milhões).

O valor —quase 20 vezes mais do que o salário anual médio na Espanha— por acaso corresponde ao custo do "visto gold" do país, um programa que oferece residência a estrangeiros ricos que compram imóveis lá. Após uma década, o programa atraiu bilhões de euros em investimentos, mas também ajudou a alimentar uma crise habitacional angustiante para seus próprios cidadãos.

Prédio resideicial com prédios ao fundo
Apartamentos em Madri, na Espanha, país que revogou vistos gold recentemente - Emilio Parra Doiztua - 17.abr.2024/The New York Times

"Não há nada que eu possa pagar", diz Barba, uma alergologista que tem trabalhado cem horas extras por mês para juntar dinheiro. "Se os estrangeiros inflacionam os preços para aqueles de nós que vivem aqui, é uma injustiça."

Diante da crescente pressão para lidar com sua crise habitacional, a Espanha anunciou neste mês que iria abolir seus vistos gold, a mais recente de uma ampla retirada do programa por governos em toda a Europa.

Meia dúzia de países da zona do euro ofereceram os vistos no auge da crise da dívida europeia em 2012 para ajudar a cobrir déficits orçamentários enormes. Países que precisavam de resgates internacionais — Espanha, Irlanda, Portugal e Grécia entre eles— estavam especialmente desesperados por dinheiro para pagar credores e viram um caminho para atrair investidores enquanto reviviam seus mercados imobiliários moribundos.

Os países lucraram: apenas a Espanha emitiu 14.576 vistos ligados a compradores ricos fazendo investimentos imobiliários de mais de € 500 mil. Mas os preços que eles podem pagar estão sufocando pessoas como Barba em um mercado que já estava altamente inflacionado pelo crescimento do Airbnb e pelo interesse de investidores de Wall Street.

"O acesso à habitação precisa ser um direito em vez de um negócio especulativo", disse Pedro Sánchez, primeiro-ministro da Espanha, em um discurso neste mês ao anunciar o fim do programa de visto gold do país. "Grandes cidades estão enfrentando mercados altamente estressados, e é quase impossível encontrar moradias decentes para aqueles que já vivem, trabalham e pagam seus impostos."

Os vistos criam facilidades para que pessoas de fora da União Europeia comprem o direito à residência temporária, às vezes sem precisar viver no país. Investidores da China, da Rússia e do Oriente Médio correram para comprar imóveis por meio deles.

Nos últimos anos, cidadãos britânicos seguiram o exemplo após o brexit, comprando casas na Grécia, em Portugal e na Espanha, juntamente com um número crescente de americanos que buscam desfrutar de um estilo de vida que não podem pagar em grandes cidades dos Estados Unidos.

Mas os programas de visto gold estão sendo gradualmente eliminados ou encerrados em toda a Europa, à medida que os governos buscam desfazer o dano ao mercado imobiliário. E após a invasão russa da Ucrânia, autoridades da UE instaram os governos a encerrá-los, alertando que poderiam ser usados para lavagem de dinheiro, evasão fiscal e até mesmo crime organizado.

Portugal, que obteve mais de € 5,8 bilhões (R$ 31,7 bilhões) em investimentos dos vistos, modificou seu programa em outubro para remover o setor imobiliário como investimento, a fim de reduzir a compra especulativa e esfriar um mercado imobiliário superaquecido. Uma onda de estrangeiros deslocou milhares de cidadãos portugueses de baixa renda de suas casas em cidades como Lisboa.

A Grécia, um dos últimos países da Europa a oferecer um visto gold, está elevando seu limite de investimento estrangeiro de € 500 mil para € 800 mil (R$ 4,3 milhões) na região de Atenas e em ilhas populares como Mykonos e Santorini. O primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis reconheceu a gravidade da escassez de moradias e da pressão nos mercados de aluguel, especialmente em torno de Atenas, mas disse que o governo ainda quer atrair investidores. A Grécia arrecadou € 4,3 bilhões (R$ 23,5 bilhões) em investimentos dos vistos de 2021 a 2023.

Um relatório divulgado pelo Instituto de Economia do Trabalho em março disse que os programas de visto ajudaram a impulsionar o desenvolvimento econômico nos países que os oferecem. Mas os governos precisam encontrar "um equilíbrio delicado entre colher benefícios econômicos e proteger-se contra riscos potenciais", incluindo lavagem de dinheiro e gentrificação desenfreada, apontou o relatório.

O recuo está ocorrendo em meio a uma crise habitacional mais ampla que atinge a Europa, após anos em que seus mercados imobiliários passaram por uma metamorfose profunda que tem expulsado cada vez mais trabalhadores de renda modesta, incluindo médicos, professores e policiais.

A gentrificação se espalhou por cidades europeias por décadas, mas o crescimento do Airbnb e de outros provedores de aluguel de curto prazo acelerou a crise de acessibilidade. Esse foi o caso em países afetados pela crise da dívida europeia, onde os proprietários descobriram que poderiam ganhar mais alugando para turistas do que para moradores locais cujas finanças foram apertadas por programas de austeridade.

Os programas de visto de residência por investimento agravaram a situação. Na Grécia, que inicialmente concedia aos estrangeiros um visto de residência de cinco anos se investissem € 250 mil (R$ 1,4 milhão), muitos anúncios de apartamentos e casas ao redor de Atenas e em ilhas gregas ventosas subitamente subiram de preços de pechincha para os mesmos € 250 mil, fora do alcance da maioria dos gregos.

Barba tem economizado dinheiro nos últimos três anos para dar entrada em uma casa. Ela alugou um quarto em um apartamento compartilhado em Barcelona quando começou o treinamento como alergologista em um hospital no centro da cidade. Mas sua renda mensal era consumida por despesas básicas de vida, incluindo alimentação, aluguel e transporte.

Para economizar mais, ela se transferiu para o hospital em Madri e agora mora com seus pais sem pagar aluguel no periferia da cidade, trabalhando horas extras para aumentar seu salário para € 1.900 (R$ 10,4 mil). Mas com casas até mesmo na vila de seus pais com preços de meio milhão de euros, ela se diz desesperançosa.

"Levaria anos para economizar o suficiente para dar entrada em uma casa. Comprar uma casa é apenas um sonho."

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