Catarse de TVs americanas contra Trump abre precedente ético complexo
Fim da paciência com presidente foi explicitado quando canais cortaram discurso mentiroso
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Ao final da diluída adaptação do clássico dos quadrinhos "V de Vingança" para o cinema, que apresentou ao mundo a máscara do rebelde seiscentista britânico Guy Fawkes, o ditador de uma Inglaterra utópica é fuzilado por um dos figurões do regime. Tudo o que ele consegue dizer é: "Repugnante".
A catarse na tela era plenamente justificável, como toda aplicada a governantes aberrantes, e a história traz uma miríade de exemplos análogos.
Na noite desta quinta (5), a mídia dos Estados Unidos executou metaforicamente Donald Trump. Com graus diferentes, o jornalismo reagiu de forma incisiva contra aquilo que um diplomata brasileiro definiu como "o ponto mais baixo da democracia americana".
As três grandes redes de TV aberta do país cortaram o evento em questão, o discurso no qual Trump despejou mentiras sobre o processo eleitoral no qual ele parece destinado a perder para o democrata Joe Biden. O mesmo foi feito por algumas plataformas online de jornais.
(Curiosidade aleatória, o discurso foi feito no mesmo 5 de novembro que marcou a conspiração pela qual Fawkes foi executado em 1606, quando tentou explodir o Parlamento em Londres, inspirando o anarquista dos quadrinhos dos anos 1980 e do filme de 2005.)
Moralmente justa, a medida drástica tem implicações éticas incontornáveis para o jornalismo profissional.
O corolário da revolta das TVs é simples: qual será a regra para determinar quem pode ou não falar? Teria a censura a Trump lá atrás, quando ele despejava sua cornucópia de lixo tóxico enquanto galgava o caminho ao poder, sido aceitável?
Há questionamentos incômodos. E se o presidente for só um sintoma? Afinal de contas, quando o teatro dramático da apuração passar, ao que parece com Biden como o novo inquilino da Casa Branca, praticamente metade dos eleitores americanos terá reiterado seu apoio a Trump.
Cortar Trump seria desrespeitar esse eleitor? Ao longo dos últimos anos, Trump e aqueles que o macaqueiam, como o brasileiro Jair Bolsonaro, têm martelado exatamente a ideia de que a "grande mídia" tolhe a "voz do povo". Aspas compulsórias aqui.
Com essa desculpa, mentem e distorcem, enquanto alimentam as supostamente "livres" redes sociais com todo o tipo de delírio de sua tropa de apoiadores —reais e robóticos.
Merecem ser punidos, isso é óbvio, mas o precedente aberto pode colocar o jornalismo profissional numa sinuca acerca de sua legitimidade como "gatekeeper", guardião do que é verdadeiro ou não.
Afinal, sabemos desde Pilatos, o que é a verdade? Equilibrar questionamento com o direito à palavra não é um desafio vulgar. Isso se aplica também à própria ação mais intensiva das redes, que vêm coibindo crescentemente o que consideram inadequado: basta dar um pulo à conta de Trump no Twitter para ver.
A resposta se insinuou na mesma noite de quinta. Diversos órgãos, como a CNN internacional, optaram por transmitir aquela peça de retórica radioativa na íntegra, só para desmontá-la na sequência.
Ao longo da madrugada, a dupla de apresentadores Wolf Blitzer e John King exasperou-se ao enfatizar a contradição básica de Trump negar o fundamento da democracia americana de forma seletiva, ao questionar a lisura da eleição só nos estados em que estava perdendo a corrida.
A degradação institucional, é bom deixar claro, foi promovida por Trump. Nesse sentido, a censura a seu discurso pode ao fim ser apenas uma hipérbole no funcionamento do sistema de freios e contrapesos que pauta a história americana. As decisões judiciais contra a investida de Trump parecem fórum mais adequado para a coerção. Mas a reflexão sobre o episódio se impõe.
Isso vale especialmente para o Brasil, onde Bolsonaro pauta sua atuação política como um decalque tropicalizado do trumpismo. Sua postura já criou questões que antecipam os embates na área, como a decisão de suspensão do plantão à porta do Palácio da Alvorada, quando a turba bolsonarista presente ameaçava fisicamente os profissionais presentes.
O pleito de 2022 está à porta. O comportamento do presidente brasileiro enseja a boa parte da elite pensante aquilo que seu aliado Roberto Jefferson falava sentir quando pensava no chefão petista José Dirceu nos idos do mensalão: instintos primitivos.
Não faltará jornalista, aqui ou nos EUA, pensando em chamar seus presidentes de "repugnante" e buscando seu cancelamento automático, para ficar no jargão. Coibir essa pulsão de rede social é trabalho civilizatório tão vital quanto questionar sistematicamente os abusos desses governantes.
Trump poderá ir embora, mas o estrago que fez permanecerá por um bom tempo.
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