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Argentina vira alvo de bolsonaristas com campanha sobre fim do país 'comunista'

Para alguns apoiadores do presidente, argentinos ocupam lugar que já foi de Cuba ou Venezuela

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Buenos Aires e São Paulo

Um casal de bailarinos de tango dança elegantemente até que, no movimento final, a dançarina torce o pé.

A imagem é usada na apresentação do vídeo “A Queda Argentina”, da produtora conservadora Brasil Paralelo, cujo objetivo, segundo se formula no próprio programa, é “proteger o Brasil dos mesmos erros”.

O filme em formato de documentário, com três episódios, foi lançado em 22 de fevereiro e somava mais de 1,1 milhão de acessos no YouTube até esta quinta-feira (11).

Sua popularidade é exemplar de um movimento que vem ganhando força na direita brasileira, de transformar o país vizinho, governado pelo centro-esquerdista Alberto Fernández desde 2019, em uma espécie de símbolo de decadência moral e econômica.

O presidente argentino, Alberto Fernández, e a vice, Cristina Kirchner, na abertura do Congresso - Natacha Pisarenko - 1.mar.2021/AFP

Isso inclui diversas manifestações em redes sociais de apoiadores de Jair Bolsonaro, incluindo deputados como seu filho Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

No imaginário de alguns bolsonaristas, os argentinos já ocupam um lugar semelhante ao que foi de Cuba ou Venezuela —com o agravante de ser um país maior e mais influente política e culturalmente.

O documentário tenta relacionar a origem da atual recessão argentina a um projeto "comunista" associado a uma radicalização esquerdista do general Juan Domingo Perón (1895-1974) a partir de seu período de exílio e seguido, até hoje, por Fernández.

A produção, sofisticada, conta com várias imagens de momentos históricos desde o começo do século 20, incluindo de protestos anarquistas, do bombardeio por parte dos militares da Praça de Maio em 1955, de discursos de Perón, da ditadura e da crise de 2001, entre outros.

Além disso, há boa música, editada para dar tom trágico aos fatos relatados, contando com tangos e a marcha peronista, que soa em alguns momentos como marcha fúnebre. “Em geral, a Argentina é vista pelos conservadores como um caso de falência institucional. Não chega a ser percebida como uma Venezuela ainda, mas está no caminho de ser”, diz Lucas Ferrugem, diretor do documentário.

Um objetivo declarado do documentário é ressuscitar o fantasma do “efeito Orloff”, referência a uma propaganda de vodca do século passado em que o slogan dizia “eu sou você amanhã”.

Ou seja, a crise argentina pode chegar ao Brasil em breve, culminando na volta da esquerda ao poder.

“Os paralelos da Argentina com o Brasil são bem claros. É como se a Argentina estivesse dois anos na frente nessa história política”, afirma Ferrugem.

Um ponto bastante explorado no documentário, e pelos conservadores brasileiros em geral, é a aprovação de lei que facilitou o aborto, no fim do ano passado.

Esse foi um dos motivos, aliás, que levaram a Brasil Paralelo a optar pelo tema do documentário.

“Viralizou no fim do ano a questão da legalização do aborto, isso circulou como uma pauta muito negativa”, diz o diretor. O contexto político tem estimulado essa animosidade da direita brasileira com os argentinos. Bolsonaro e Fernández trocam rusgas desde 2019, e ainda não se encontraram pessoalmente, o que deve ocorrer finalmente neste mês, em reunião do Mercosul.

O presidente argentino é um aliado assumido do PT e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que contribui para sua rejeição pelos bolsonaristas.

O cientista político argentino Andrés Malamud, que assistiu ao documentário a pedido da Folha, chama a atenção para o que vêm significando, na prática, as faíscas trocadas entre Fernández e Bolsonaro.

"Hoje temos o contrário do que tínhamos nos anos 2000. Naquela época, havia uma retórica de amizade, mas uma competição na prática. Hoje, há colaboração na prática, mas a retórica é agressiva. Ambos estão falando a seu eleitorado interno. A Bolsonaro convém essa retórica da 'Argentina comunista', assim como a Fernández convém se aproximar de Lula e posar de esquerdista, algo que ele não é", afirma.

Para Malamud, a associação entre peronismo e comunismo presente no documentário é forçada. "É uma mistura que não faz nenhum sentido, parecem colocados juntos para confundir. A esquerda foi derrotada na história da Argentina, ou seja, o contrário do que se mostra no filme ", diz.

O estudioso afirma que há um elemento que dá um fundo de verdade para o filme: o longo período de decadência econômica do país desde 1930. "Mas há um equívoco fundamental, no filme e nos discursos recentes de Bolsonaro, de que o peronismo é de esquerda e é anticapitalista. Isso é falso."

Além do filme da Brasil Paralelo, outras iniciativas de apoiadores de Bolsonaro atacando a Argentina têm viralizado. São comuns, por exemplo, as mensagens de WhatsApp em grupos de amigos com "depoimentos" de brasileiros que estiveram na Argentina e contam que "há pobres esperando sobras e ossos na porta dos açougues", que "somente caminhões possuem permissão para rodar" durante a pandemia e que há "70% da população desempregada" —na verdade essa cifra é de 11,7%.

É fato que a situação econômica do país é difícil. A inflação anual está em 38,5%, há poucas reservas e muita dificuldade em cumprir seus compromissos internacionais. A Argentina conseguiu, no ano passado, renegociar sua dívida em moeda estrangeira, mas ainda falta reestruturar outra, com o FMI (Fundo Monetário Internacional), de US$ 44 bilhões (cerca de R$ 244 bi).

Para aliviar o impacto da pandemia, o governo ofereceu ajuda a pessoas físicas e jurídicas, mas para isso teve de imprimir 1,2 bilhão de pesos (R$ 73 mi), o que pode acarretar alta na inflação.

Mesmo assim, algumas áreas vêm recuperando o crescimento, como a construção e a indústria, e há a previsão de recuperação do PIB —que caiu 10% em 2020— de pelo menos 2%. E não há, como no Brasil, colapsos de hospitais por conta da pandemia. A pobreza está em 44%, mas a ajuda governamental durante a pandemia e a proibição temporária das demissões têm contido explosões sociais.

Para o empresário e influenciador digital conservador brasileiro Leandro Ruschel, “a Argentina foi tomada pela esquerda, talvez de forma irremediável”. “Lá temos o equivalente à volta do PT ao comando do Brasil, com a implementação de uma agenda econômica socialista, além de outras como ideologia de gênero e aprovação do aborto. Resumindo, é um aviso sobre o que pode acontecer com o nosso país”, afirma.

Outro que enxerga uma ameaça de contágio argentino sobre o cenário brasileiro é o deputado federal Bibo Nunes (PSL-RS), apoiador de Bolsonaro. Para ele, a esquerda pode se aproveitar do fracasso de um governo de direita, como ocorreu com o ex-presidente argentino Mauricio Macri, derrotado por Fernández.

“Há uma ligação fortíssima, umbilical, da esquerda argentina com a brasileira. O Lula é o candidato deles. Vão trabalhar para elegê-lo”, diz. Segundo Nunes, Macri não teve pulso. “Faltou um pouco de Bolsonaro nele. E daí a esquerda voltou. Aqui pode voltar também, evidentemente”, diz.

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