Livros proibidos, ou por que estupidificar uma população
Constrói-se discurso no país para justificar o emburrecimento
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Parece já estar sendo esquecida a tentativa da Secretaria de Educação de Rondônia de recolher livros das escolas públicas. Pouco importa que a secretaria tenha se declarado contra o memorando, dizendo que respondia a "denúncias". A única coisa a ser denunciada é o gesto de censura, e a responsabilidade é do governo do estado, seja quem tenha fantasiado que recolher livros melhora a educação de uma região em que 8% da população é analfabeta. Aliás, o que aconteceria se o memorando fosse expedido e alguém não cumprisse a ordem?
A questão de fundo é que diversos políticos e/ou aliados do atual governo Bolsonaro abominam o conhecimento e as artes. Tudo o que se relaciona à formação intelectual e cultural em um país em que menos de 50% da população conclui o ensino médio é combatido por quem deveria defendê-lo. Enquanto se perpetuam ignorância e desigualdade social, os responsáveis pela educação, nos mais diversos níveis, preocupam-se em ouvir gurus de internet, cortar verbas para ensino e pesquisa, interferir na autonomia das universidades, polemizar com a obra de Paulo Freire, criticar filmes, estimular preconceitos, xingar jornalistas, ofender artistas, emular ditadores e banir livros. E discutir no Twitter. Por quê, afinal?
Conhecimento incomoda porque nos torna insubmissos. A literatura também é uma forma de conhecimento por levar a um “pensar mais”, como escreve Paul Ricoeur, por criar mundos ficcionais, imaginados de tal forma que conduzem a uma reflexão profunda sobre o mundo real. Imaginemos o que nos restaria ler se fossem banidos livros, jornais, textos de líderes religiosos, artistas, cientistas, intelectuais, professores? O que restaria? As mensagens do governo no Twitter e a versão “oficial” dos fatos.
Associada a outros episódios em que membros do governo mostraram sua adesão ao pensamento totalitário, a tentativa de banir livros confirma que tal adesão é mais ampla do que se imagina. Não se trata mais da indiferença de parte da nossa elite ao destino da população menos afortunada, nem apenas do desejo de manipular a população para propósitos espúrios.
Estes são problemas conhecidos, para os quais ainda não encontramos solução. Agora estamos testemunhando a construção de um discurso que procura justificar o emburrecimento, a estupidificação de uma população inteira para abrir espaço a um delírio totalitário.
Custa-nos crer, de fato. Mas é o que está em curso. Dia a dia algum integrante ou simpatizante do governo lança uma ideia de impossível realização, mas de caráter claramente totalitário. O que se segue é conhecido: há um levante geral nos meios de comunicação, e logo o protagonista do escândalo tenta “esclarecer” o que disse e declara que foi mal interpretado. Com os supostos “esclarecimentos”, criam-se ambiguidades, altera-se o sentido das palavras, confunde-se a população e se difundem ideias ditatoriais, como observou V. Klemperer.
As declarações ganham apoio de pessoas ou de robôs que passam a detratar seus críticos. O gesto —como o da censura aos livros— é esquecido, a atenção se desvia à polêmica e quem criticou precisa se defender nas mídias, enquanto se naturalizam os episódios de violência verbal, física e psicológica contra os novos “inimigos do povo”.
Muita gente que, numa situação normal, não hesitaria em combater tais atitudes, desconhecendo como se chega a tal estado de coisas e sem saber como lidar com ele, se assusta e se autocensura, ou se torna indiferente e se cala.
Paralelamente ao debate, celebram-se avanços na economia, minimizam-se os problemas, recordam-se crimes de governos anteriores —e assim se relativiza a periculosidade dos discursos. Trata-se de uma estratégia conhecida para conseguir a adesão de uma população inteira a um projeto de governo totalitário. Cabe a cada um de nós não se deixar estupidificar.
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