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Gabriela Rondon e Ana Gabriela Ferreira

Não se protegem mulheres sem ouvi-las

Portaria pode afastar vítima de estupro do hospital

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Gabriela Rondon

Advogada e pesquisadora na Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, é doutora em direito pela Universidade de Brasília

Ana Gabriela Ferreira

Advogada e líder de Acesso à Informação e Transparência na Artigo 19, é mestra em direito pela Universidade Federal da Bahia

Desde agosto, uma norma inconstitucional e ilegal prejudica a atenção a vítimas de violência sexual neste país. Trata-se da portaria 2.282/2020, do Ministério da Saúde, depois substituída pela quase idêntica portaria 2.561/2020, que obriga profissionais da saúde a reportar à polícia os casos de mulheres que buscam o aborto legal após um estupro.

Diferentemente do que afirmou o secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara Medeiros Parente, em artigo publicado nesta Folha (“Uma portaria para proteger vítimas e punir estupradores”; 11.nov.20), a portaria não é “necessária”. Ao contrário, extrapolou as competências do Ministério da Saúde, criando obstáculos ao acesso ao aborto a vítimas de crime tão cruel.

O secretário diz que a lei 13.718/2018 obrigou essa alteração. Essa lei, de fato, tornou incondicionada a ação penal para os crimes contra a dignidade sexual. Isso significa que o sistema de Justiça não precisa do consentimento da vítima para iniciar uma ação contra o agressor. No entanto, a regra só se aplica ao Ministério Público, não se estende aos profissionais da saúde. Caso houvesse essa previsão, seria violado o direito e dever de sigilo das informações confidenciadas no acesso à saúde.

O direito ao sigilo é inerente à proteção da dignidade, intimidade e vida privada das pessoas que buscam cuidados médicos. Nos casos de estupro o sigilo é indispensável, pois é o que garante os cuidados emergenciais em saúde de meninas e mulheres que temem buscar a polícia.
Esse temor infelizmente não é infundado. Segundo o último Atlas da Violência, 76% das vítimas de violência sexual foram estupradas por parente ou amigo da família, mais de dois terços na própria casa —e por isso temem a retaliação, a vergonha e a exposição que podem decorrer da denúncia.

Há ainda o temor da exposição judicial, frequente em registros de violência sexual, como ocorreu no repugnante caso Mariana Ferrer. Por isso, o número de denúncias é inferior ao total estimado de casos de estupro. Pesquisa do Instituto Patrícia Galvão mostra que apenas 29% das pessoas entrevistadas consideram que a polícia está habilitada a atender a vítimas desse crime.

A obrigatoriedade da denúncia é, portanto, um meio ineficaz que não protege a vítima. Na realidade, a obrigatoriedade de comunicação policial poderá afastar as mulheres dos serviços de saúde, resultando em maior subnotificação. Por essa razão, mais de 2.200 profissionais de saúde publicaram nota de repúdio às novas regras. Argumentam que, de modo a resguardar o cuidado da vida e da saúde, não é ético comunicar fatos sem autorização expressa das vítimas.

Isso não significa que a Justiça não deva ser acionada para responsabilizar agressores. Mas não se pode condicionar o acesso à saúde a uma denúncia obrigatória à revelia das vítimas. As mulheres e meninas que passam pela atroz violência do estupro, que, como sabemos são predominantemente negras e pobres, devem ser cuidadas, ouvidas e acompanhadas para que depois, se desejarem, façam a denúncia. Se não for assim, vão evitar os hospitais como hoje, infelizmente, evitam as delegacias. O Ministério da Saúde saberia disso se ouvisse as mulheres brasileiras.

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Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​​

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