Descrição de chapéu Folhajus

Uso irrestrito de objeção de consciência limita o direito ao aborto no país

Temor de consequências legais e sociais pode levar médicos à recusa de procedimento previsto em lei

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

​Direito assegurado pelo Estado brasileiro, o aborto legal —previsto em casos de gravidez após estupro, de feto anencéfalo e quando há risco de morte materna— por vezes ainda esbarra na chamada “objeção de consciência” dos médicos, o que leva mulheres que buscam fazer valer a lei a um périplo.

Considerada um amparo ético que resguarda a médicos a opção de não realizar procedimentos que coloquem em xeque suas crenças, a objeção de consciência foi um dos elementos presentes na história da menina capixaba de dez anos, grávida após ser vítima de seguidos estupros, que precisou viajar mais de 1.600 km para ter acesso ao aborto legal.

Segundo revelado pela coluna Painel, um levantamento interno no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (Hucam), no Espírito Santo, indicou que 70% do corpo técnico do hospital apresenta objeção de consciência à prática do aborto.

O dado confronta uma primeira justificativa dada pelo hospital, segundo a qual não havia profissionais e nem domínio da técnica para caso de gravidez maior que 22 semanas (a gestação da menina de 10 anos era de 22 semanas e 4 dias). A afirmação sugere que a unidade não está capacitada para realizar o procedimento de evacuação ou de antecipação de parto, inclusive em casos de interrupção involuntária da gravidez.

“Me parece que nós estamos diante ou de um problema técnico importante de assistência e de falta de qualificação médica, ou diante de uma justificativa que não procede para qualquer um que tenha passado pela cadeira de ginecologia e obstetrícia numa faculdade de medicina”, afirma a antropóloga Debora Diniz, que questiona a explicação.

*
Manifestantes se reúnem diante de hospital em Recife para protestar contra o aborto legal em uma menina de dez anos grávida após ser estuprada - Filipe Jordão-16.ago.20/JC IMagem

Um estudo de 2015 conduzido por Diniz e pelo pesquisador Alberto Pereira Madeiro mostrou que apenas 37 dos 68 centros de referência do Ministério da Saúde, distribuídos em sete estados do país, realmente prestavam atendimento para o aborto legal.

Segundo os profissionais entrevistados pelo estudo, a razão para a recusa por parte de médicos em realizar um aborto se dá menos por convicções morais ou religiosas e mais pelo temor das consequências legais e sociais negativas relacionadas ao procedimento, diz o estudo.

Outro estudo dos pesquisadores com ginecologistas e obstetras, realizado em 2012, mostrou que 43% dos médicos declararam objeção de consciência quando não tinham certeza de que a mulher estava contando a verdade sobre o estupro.

A culpabilização e incompreensão que recaem sobre vítimas de abuso sexual também afetam profissionais de saúde, afirma Marina Ganzarolli, presidente da Comissão da Diversidade Sexual OAB.

“O problema não é existir a objeção de consciência. A gente não tem um sistema de Justiça e de saúde que garanta o direito e o sigilo às vítimas, quem dirá aos envolvidos”, segue Ganzarolli.

Levantamento do Núcleo Especializado da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo demonstra a insegurança entre os médicos. De 30 denúncias contra mulheres pela prática de aborto analisadas pelo órgão, 17 partiram de profissionais de saúde que as atenderam no SUS.

“A objeção de consciência é um preceito constitucional e ético muito valorizado, mas não é uma escusa”, afirma Debora Diniz, que defende que os profissionais apresentem justificação sobre suas crenças. “Isso não pode ser uma prática médica que leve a uma omissão de socorro.”

Em nota, o Hucam afirma que seus médicos fazem uso da objeção de consciência cientes de que a prática somente é viabilizada se não houver ameaça imediata à integridade do paciente e que, quando um profissional exerce seu direito à objeção, outro é destacado para o atendimento.

O hospital ainda diz que, após o caso, instaurou um grupo de trabalho para analisar “a necessidade ou não de padronização específica da conduta frente a essa indicação clínica e legal de intervenção médica.”

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.