Governo nomeia médico contra 'ativismo pró-aborto' para atenção primária na Saúde

Nomeação ocorre dias após ministério revogar nota técnica que citava aborto legal e foi distorcida por Bolsonaro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília e São Paulo

O governo nomeou nesta terça-feira (23) o médico ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente para o cargo de secretário de atenção primária no Ministério da Saúde, área que responde pela organização de ações voltadas a unidades de saúde e diretrizes de cuidados básicos no atendimento na rede.

A nomeação foi publicada no Diário Oficial da União, e assinada pelo ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto.

Parente é mestre em saúde pública pela UERJ, doutor em ginecologia pela Unifesp e conselheiro do CFM (Conselho Federal de Medicina). Ele é relacionado à ala ideológica do presidente e um dos defensores do projeto de abstinência sexual proposto pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

O ginecologista e obstetra Raphael Câmara Medeiros Parente, em audiência no Congresso
O ginecologista e obstetra Raphael Câmara Medeiros Parente, em audiência no Congresso - Jane de Araújo- 11.out.19/Agência Senado

Vinculado ao Instituto de Ginecologia da UFRJ, o novo secretário tem sido conhecido nos últimos anos por defender, em debates, posição contrária ao aborto.

Em outubro de 2019, Parente escreveu um artigo na Folha contra o que chamou de "ativismo pró-aborto". No texto, ele dizia que a militância usava dados falsos sobre o impacto do aborto ilegal e que, por isso, o quadro não deveria ser considerado um problema de saúde pública.

Sua nomeação foi recebida com indignação e críticas por vários profissionais da saúde, especialmente por representantes das equipes que trabalham na atenção básica em todo o país.

Em várias ocasiões, Câmara já contestou as alarmantes estatísticas de mortes provocadas por abortos clandestinos no Brasil. Ele afirma que os números são “superestimados por má-fé".

Em 2018, o próprio Ministério da Saúde apresentou estimativa em audiência pública no Supremo Tribunal Federal estimando em cerca de 1 milhão os abortos induzidos no país.

Os procedimentos inseguros de interrupção voluntária da gravidez levariam à hospitalização mais de 250 mil mulheres por ano —e causariam uma morte a cada dois dias.

No artigo, ele também criticava a postura do Ministério da Saúde sobre o tema. "Embora o presidente Jair Bolsonaro (PSL) tenha dito ser contra o aborto, até aqui o Ministério da Saúde não agiu. Em julho, eu e senadores demos sugestão não incorporada para diminuir aborto provocado. Uma portaria vigente de governo anterior permite o aborto quando a mulher diz ter sido estuprada sem se denunciar o estupro, o que contraria lei de 2018, que obriga a denúncia", disse.

O artigo gerou polêmica e foi rebatido por outros médicos, segundo os quais Parente deixou de apontar a ocorrência de subnotificação de casos de aborto ilegal —situação já consolidada em literatura científica—, e colocou em dúvida a palavra das mulheres.

Parente escreveu o artigo diante da possibilidade de julgamento de ações que pediam o direito ao aborto para mulheres vítimas do vírus da zika. Neste ano, o plenário virtual do Supremo rejeitou as ações.

Em outro artigo, defendeu a abstinência sexual entre jovens, afirmando que a "iniciação sexual precoce” estaria relacionada à maior chance de contração de doenças sexualmente transmissíveis e gestações indesejadas.

"Então, como não incluir a abstinência sexual em uma política dirigida para este público de adolescentes?”, escreveu.

A nomeação de Parente ocorre semanas após o Ministério da Saúde revogar uma nota técnica que citava a importância de manter ações em apoio à saúde das mulheres durante a pandemia, as quais incluíam acesso a contraceptivos e ao aborto nos casos previstos em lei.

O documento foi distorcido pelo presidente Jair Bolsonaro, que afirmou via redes sociais ser contra proposta de legalização do aborto (o que não constava do texto) e que o ministério buscava a autoria do que chamou de "portaria apócrifa" (que, na verdade, era uma nota técnica assinada pela coordenação de saúde das mulheres, vinculada à secretaria).

Após a declaração de Bolsonaro, a equipe que assinou o documento foi exonerada da pasta. O ministério justificou a medida alegando "reestruturação da equipe".

Parente assume no lugar de Erno Harzheim, que deixou o cargo no fim de abril, após a saída do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. A pasta estava sem titular desde então.

Em artigo recente no jornal O Globo, Parente criticou a falta de equipamentos de proteção a profissionais de saúde e apontou erros das três esferas no combate à pandemia.

Segundo ele, o governo federal "errou por não ter feito a prometida carreira de Estado, não ter fechado fronteiras quando a Covid-19 ainda não tinha entrado, e ter liberado o Carnaval com o vírus já circulando no Brasil".

Em carta recente à Folha, publicada no Painel do Leitor, o novo secretário também comentou coluna de Hélio Schwartsman sobre a diferença entre as estratégias da Suécia e da Nova Zelândia no combate à pandemia da Covid-19.

"Hélio Schwartsman diz em sua coluna que a estratégia neozelandesa se terá mostrado melhor que a sueca se a vacina contra o coronavírus não demorar. Mas o provável é que demore. Quem defende 'lockdown' tem de mostrar como sustentar milhões em casa em um país quebrado e como impor isolamento para quem vive em área comandada pelo tráfico", escreveu.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.