Siga a folha

Descrição de chapéu réveillon

O brilho das moedas no brilho das latinhas

Eu me lembro do sorriso orgulhoso escondido meio que de lado no rosto do velho

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Stefano Volp

Roteirista, tradutor, escritor e jornalista, é fundador da editora Escureceu e autor, entre outros, de "Homens Pretos (Não) Choram"

Quantas latinhas um "homem da casa" precisa catar na virada do ano para garantir que sua família tenha o que comer por alguns dias? Por mais que o episódio tenha quase 20 anos, ainda consigo me lembrar dos detalhes de quando meu pai decidiu se aventurar no Réveillon.

Diziam que catar latinha em Copacabana dava muito dinheiro, que os fogos atraíam a atenção de milhões de pessoas no mundo inteiro. Meu pai, um homem negro cuja profissão se tornara obsoleta, era conhecedor dos ferros-velhos. Sabia de cor e salteado o preço atualizado de cada item: cobre, garrafa pet, latinha, alumínio. Por conta do peso, vender latinha só daria uma boa grana se ele juntasse uma quantidade robusta. E imagina só quantas estariam à disposição em um dos calçadões mais populares do mundo...

Foi a mãe quem contou para os sete filhos (incluindo eu) o que estava para acontecer: "O pai de vocês vai catar latinha na virada do ano". A princípio, a ideia pareceu divertida. Meu pai não era um homem de despedidas, mas eu vi quando ele foi embora. Desceu o morro com um saco de plástico gigante dobrado em mil partes e uma explosão de determinação dentro do peito. E por mais que não tivéssemos uma relação afetuosa, lembro-me das preocupações que me acompanharam enquanto ele passava a noite a 50 quilômetros de distância do morro onde morávamos.

Talvez ninguém perceba que ali, onde o oceano beija o negrume do céu, enquanto milhares de bombas geram explosões, abrilhantando a praia, despertando vivas, sorrisos e abraços, centenas de pessoas reviram lixeiras atrás de objetos metálicos. A grande maioria composta por pais que veem o brilho das moedas no brilho das latinhas; homens pretos e pobres vestidos de honra e a trabalho.

Ao observar a vida do meu pai, aprendi muitas coisas que eu não queria ser ou fazer. Ao mesmo tempo, devo a ele o agradecimento por ensinamentos como este: o homem preto não pode deixar nenhuma oportunidade passar, pois pode ser que leve anos até que uma nova apareça.

Quando ele chegou em casa parecia um zumbi. O corpo retinto brilhava de suor, os olhos amarelados. Tinha passado dois dias na orla, catando e vendendo, catando e vendendo, até fazer um bolo de dinheiro e entregar na mão de minha mãe.

Felizmente, não era só o suor e o cansaço. Porque eu me lembro do sorriso orgulhoso escondido meio que de lado no rosto do velho. O sorriso de quem tinha driblado a escassez e tirado vantagem em cima do lixo de quem tinha grana para gastar com incontáveis latinhas, cantando "Que tudo se realize no ano que vai nascer! Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e render!". Pra quem?

Queima de fogos em Copacabana em 2019/2020 - Gabriel Monteiro/Riotur

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas