Clarice, a Rosetta de Ben
Benjamin, ou Ben Moser, tem 33 anos, alto, simpático, jeitão desengonçado. Fala feito um condenado em seis, sete, não sei quantas línguas, entre elas o inglês (materna), o francês, tão bem quanto o inglês, alemão, holandês, italiano, português, espanhol, hebraico. Vamos parar por aqui. Ele traduz de todas estas línguas e "se ficar seis meses na Tailândia vou falar tailandês fluente". Brilhante à primeira vista, a uma segunda também.
Este poliglotismo está em parte no DNA de uma avó judia acadêmica, filha de rabino que se casou com um brasileiro e um avô alemão. Ele cresceu em Houston, onde a mãe tinha uma livraria e até hoje é a Madame Cultura da cidade. Todas as noites recebe em casa ou na livraria.
"Se você é intelectual, escritor ou jornalista e passar por Houston, vai ser difícil escapar da minha mãe". Ele gosta dela e de Houston.
Estudou na França, depois na Universidade Brown, nos Estados Unidos, sobre América Latina.
Marcha à ré. O avô dele, que casou com a judia acadêmica, filha de rabino, no começo do século 20, foi para o México, logo depois da revolução, e roubou preciosos manuscritos do século 16 do museu do México.
Se deu mal. Foi preso e banido para Portugal. A notícia chegou ao Recife onde descobriram que ele já era casado e tinha um filho. O casamento foi anulado, mas a avó se interessou pela história dos judeus no Recife. Anos mais tarde, quando estudou América Latina na Universidade Brown, Ben aprendeu português, passou seis meses no Brasil e foi fisgado pelo país.
Ben foi editor da Knopf em Nova York, decidiu ser escritor, hoje é também crítico e ensaísta. Publica uma coluna mensal sobre livros na revista "Harpers", contribui regularmente para a "New York Review of Books" e faz matérias de viagens para a "Condé Nast".
O interesse pela literatura brasileira começou pela poesia de Gregório de Mattos, passou pelos poetas mineiros da Inconfidência, depois Lúcio Cardoso, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, mas quem pegou Ben foi Clarice Lispector. O interesse surgiu, em parte, pelas histórias da avó sobre os judeus do Recife.
Logo no primeiro livro, Ben caiu no mistério de Clarice. Judia, refugiada da Ucrânia, de onde chegou com menos de um ano de idade, e a vida inteira teve um sotaque estranho que o fonoaudiólogo Pedro Bloch corrigiu mas que ela fez questão de descorrigir : "Não gosto de perder minhas características".
Ben investiu cinco anos da vida em Clarice. Leu e releu, falou com a família e centenas de outros brasileiros e estrangeiros que conheceram e estudaram Clarice.
Este poliglota, capaz de ver numa palavra dois, três, quatro significados e interpretações, sentiu-se capaz de decifrar talvez a melhor, com certeza a mais linda e misteriosa escritora brasileira, conhecida como a Esfinge.
Gregory Rabassa, o melhor dos tradutores do espanhol e do português, ficou embasbacado quando encontrou Clarice Lispector que "parecia Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Wolf".
Foi comparada a Kafka, Rimbaud, Rilke, mas dizia "sou tão misteriosa que eu mesmo não me entendo" e ficava chocada com as comparações. Em Paris, saiu frustrada de um debate sobre a obra dela. Não entendeu nada do que diziam os geniais acadêmicos. Foi para casa, devorou uma galinha, escreveu um conto.
"Meu mistério é que não tenho mistério" é outra autodefinição que enriquece os segredos de Clarice. Em Nova York, Fernando Sabino falava nela sem parar e criticava meu pobre conhecimento sobre Clarice. Os dois tiveram uma longa paixão platônica e uma rica correspondência.
Ben diz que nunca houve um affair entre eles, mas, com o escritor Paulo Mendes Campos, foram além de Platão. O trecho foi cortado da versão brasileira que vai ser lançada na próxima semana. Benjamin é um gentleman. O affair faz diferença? Ela teve uma vida de tantos segredos e sem escândalos.
A irresistível biografia escrita por Benjamin Moser (Why this World, Oxford University Press), que recebeu ótimas criticas nos Estados Unidos, ilumina o mistério Clarice Lispector, tanto o literário quando o pessoal. Ele --e ela-- hoje estão no circuito universitário americano, nas rádios, jornais e programas culturais. Será um bestseller como Paulo Coelho? Com certeza, não. Vai ser a mais lida das nossas escritoras gracas ao Ben? Provável, se ainda não é.
Benjamin esta semana sentou na cadeira onde durante quatro anos sentou Paulo Francis, responsável pela última frase do livro, o perfeito epitáfio de Clarice, segundo Benjamin: 'Ela se tornou a própria ficção".
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