O túmulo de Moacyr Toledo Piza no Cemitério da Consolação é cheio de significados. Sobre ele há uma escultura de uma mulher nua e voluptuosa com o pescoço inclinado languidamente em direção ao joelho. A branquitude da estátua e a nudez escancarada no meio da necrópole brilham aos olhos e chamam atenção em meio a dezenas de tumbas austeras e escuras. Impossível não pensar em Eros e Tânatos. A obra de arte é de autoria de Francisco Leopoldo e Silva, que lhe deu o nome de "Interrogação".
Tanto a figura sensual como o nome são sugestivos do triste destino de Toledo Piza, que se matou depois de assassinar a amante, Nenê Romano, uma das mais belas cortesãs de sua época. A tragédia aconteceu na esquina da Rua Sergipe, nas imediações da Praça Buenos Aires, na noite de 25 de outubro de 1923 e provavelmente o escultor se perguntava por que Piza, homem prestigiado e bem visto pelos seus pares teria enveredado em uma trama amorosa tão complicada e matado a amante para em seguida dar fim à própria vida.
Pertencente a uma família quatrocentona, Piza formou-se na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e foi delegado de polícia em cidades do interior antes de instalar seu escritório de advocacia em São Paulo. Era também escritor, mas sem qualquer pendor modernista. Um de seus companheiros de literatura era Hilário Tácito, pseudônimo de José Maria de Toledo Malta, que escreveu o romance "Madame Pommery", que tratava da rotina de um bordel de luxo frequentado pela elite paulista.
Italiana, Nenê chegou ao Brasil com dois anos e seu verdadeiro nome era Romilda Machiaverni. Foi morar no Brás, bairro com uma grande população de imigrantes pobres e bem jovem começou a trabalhar como costureira. Logo, porém, conseguiu um emprego como camareira em um hotel no Centro e adquiriu consciência de sua beleza estonteante pela reação que causava nos homens. Seu próximo passo foi a prostituição e Romilda se transformou em Nenê, mudando sua identidade e seu visual.
Piza e Nenê se conheceram por causa de um imbróglio judicial. Em 1918, Nenê foi vítima de uma emboscada na frente da sua casa, na rua Bento Freitas, 3. Tomou uma navalhada na face a mando de uma grã-fina chamada Maria Eugênia Junqueira, cujo pretendente havia feito galanteios para Nenê no corso de Carnaval na avenida Paulista. A navalhada não desfigurou Nenê, que continuou atraente. E, além disso, decidiu processar sua agressora, herdeira de uma família de cafeicultores. Para isso procurou o escritório de Piza.
O romance durou cerca de dois anos e foi Nenê que decidiu se afastar do amante. Ele havia se tornado muito possessivo. Tomado pela paixão, se afastou de seus afazeres profissionais e dos amigos. Costumava procurar Nenê insistentemente querendo reatar. Mas ela havia decidido retomar sua vida de cortesã. Atendia na própria casa, onde recebia clientes ilustres que cobravam discrição, entre eles Washington Luís, então presidente do estado.
Piza tentava reconquistá-la de todas as formas. Rondava sua casa, mandava presentes e flores, mas Nenê permaneceu irredutível. Desesperado, Piza publicou um livro com o título "Roupa Suja" no qual fazia referências a Nenê e insinuações sobre sua relação com Washington Luís. Tinha perdido o juízo e virado um personagem patético. No dia fatídico, estava de tocaia na frente da casa dela e entrou junto com Nenê num carro de praça que ela havia chamado. Circularam pela cidade até que ele sacou um revólver e lhe deu três tiros. Depois atirou no próprio peito.
Numa sociedade patriarcal e machista, o suicídio de Piza, de 32 anos, causou mais comoção do que o assassinato que ele havia cometido. Seu túmulo trata de um feminicídio poeticamente. Ele virou, inclusive, nome de rua nos Jardins. Quanto a Nenê, morta aos 26 anos, foi considerada uma fêmea fatal que desencaminhou um jovem da elite. Ela foi enterrada no cemitério do Araçá. A tragédia aconteceu há 100 anos e ainda ecoa na memória da cidade.
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