Jairo Marques

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Exoesqueleto vende esperança e oculta necessidades reais de inclusão

Passei muitos anos atrás de um milagre que me fizesse andar e o custo foi demorar demais para me entender como alguém completo

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Estamos novamente encantados com as possibilidades incríveis e tecnológicas de fazer o povo com deficiência voltar a andar, ser "mais normal", por meio do uso de ultramodernos exoesqueletos que levantam qualquer um da cadeira de rodas e os reabilitam a caminhar.

Há menos de dez anos, na abertura da Copa aqui no Brasil, a expectativa era ver um garoto usando um bichão cibernético desses dar o pontapé inicial da competição e botar o mundo para chorar de emoção com um milagre da ciência.

O que se viu foi um tremendo fiasco que custou milhares de reais e hoje, suponho, deve dormir num ferro-velho soando "bip, bip, bip" dentro de uma caixa de sapato. O que ainda segue vívido é encontrar uma solução para dar mais "liberdade" a quem tenha questões graves de mobilidade.

Uma estrutura metálica vermelha está acoplada nas pernas de uma criança que usa calça preta
Exoesqueleto usado para reabilitação de crianças no México - Claudio Cruz / AFP

Não consigo ter euforia diante os avanços com a veste eletrônica, que de tão pomposa oculta a realidade da pessoa com deficiência neste país, sem acesso ao que é básico para sua sobrevivência mais rudimentar: a rua com calçadas dignas, direito à educação e ao trabalho, condições de poder comprar equipamentos para ter mais qualidade de vida dentro e fora de casa.

O governo de SP, com uma velocidade inédita para questões relativas à inclusão, já mandou enviar por Sedex duas unidades do robozão, ao custo de cerca de R$ 1 milhão, para botar o povo para caminhar no hospital, quiça, dar uma fugidinha até o bar da esquina para tomar um rabo de galo.

Sou absolutamente favorável aos avanços que otimizem a realidade das pessoas, mas não vejo comoção de agentes públicos diante os valores atuais de uma cadeira de rodas de boa qualidade, de uma almofada para assentar o popô o dia todo sem causar ferimentos. Tudo é absurdamente caro e a exclusão é dramática.

Em uma esteira, partes inferiores de um exoesqueleto em funcionamento. É possível ver vários fios, computadores e duas pernas humanas
Parte da estrutura do exoesqueleto desenvolvido no Brasil exibido durante a abertura da Copa - Bruno Santos/ Folhapress

Nem mesmo renúncia fiscal efetiva para que o povo quebrado consiga comprar veículos e ter alguma autonomia nas cidades os Estados abrem mão. O "desconto" que o senso comum avalia existir é hoje quase um troco e milhares de brasileiros com deficiência não conseguem mais praticar um direito.

Achei linda a emoção genuína da repórter do Fantástico Flávia Cintra, tetraplégica desde a juventude, explicando sua sensação ao usar o exoesqueleto em uma clínica nos EUA. Ela também foi certeira em apresentar o equipamento como uma ferramenta de reabilitação que poderá servir no auxílio de alguns indivíduos. Não senti dela deslumbre, apenas a legítima comoção de estar em pé e se movimentar de maneira inédita, sem ostentar esperanças vagas, sem fomentar o que é irreal.

Passei muitos anos da minha existência atrás de uma solução/milagre que me fizesse andar e o custo disso foi demorar demais para me entender como alguém completo, humano e de verdade diante da condição que tenho, de cadeirante, de uma pessoa com deficiência. Nenhuma melhoria de fora para dentro irá alterar essa essência.

Antes de pensar em ser conduzido por um exoesqueleto, sigo querendo poder chegar pertinho do mar com minha filha, de poder aproveitar os cantos das cidades, de poder interagir com as pessoas nos lugares que hoje sou expulso por questões basilares de falta de acessibilidade.

Os robôs de assistência parecem ser uma realidade muito próxima e devem promover impacto na vida de muitos. O que não dá para compactuar, por enquanto, é com a ideia de eles fazerem alguém voltar a andar, de curar, atropelando a real vontade da gente, que é poder ser quem somos.

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