Ciência Fundamental

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E se a matemática fosse uma ciência exata?

Ou: quem disse que ela é mesmo uma ciência?

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Edgard Pimentel

Os temas do conhecimento científico são muito variados. Talvez consequência de uma curiosidade infinita, estudamos matemática, física, medicina e fisiologia, e inclusive a história social do jazz. Algumas ciências acabam sendo chamadas exatas; outras, biológicas. E há ainda as sociais aplicadas, como o direito e a economia. Mas que classificação é essa? Por que se diz que a matemática é exata? E quem disse que matemática é ciência?

O debate acerca da matemática como ciência é profundo, envolve diversas ideias. É inegável que ela reúne conhecimento relevante. Entretanto, não é evidente que a pesquisa em matemática dependa de evidências empíricas. Mais sutil é que teses matemáticas não são falseáveis, no sentido proposto pelo filósofo austro-britânico Karl Popper em 1934.

Arte ilustra flamingos sobre uma máquina antiga e envoltos por desenhos geométricos.
Ilustração: Joana Lavôr

​Popper sugere que nenhum experimento (ou conjunto de experimentos) é capaz de demonstrar uma tese científica. Mas basta uma evidência em contrário para a teoria ser descartada. Ainda que todos os flamingos que eu já tenha visto sejam cor-de-rosa, isso não garante a validade da tese de que todos o serão. Se houver um único flamingo cinza por aí, saberemos que a tese é falsa.

Ora, uma vez demonstrada, uma proposição matemática não pode ser falseada. Vamos pensar na Conjectura de Poincaré. Formulada por Henri Poincaré em 1904, ela afirma que qualquer objeto tridimensional com certas propriedades topológicas é uma esfera: uma bola de futebol, ainda que murcha, é uma bola. No começo deste século, Grigori Perelman demonstrou que a conjectura é verdadeira. E sua demonstração independe de observações empíricas. É impossível que surja um grupo de pesquisa com resultados que invalidem a conjectura.

Superando esta primeira camada do debate, ainda que longe de uma conclusão, vem outra questão: a matemática como ciência exata. Ora, uma ciência é exata se produz conclusões e resultados precisos. Um exemplo é o sensacional "dois mais dois". Clímax da sabedoria popular, a expressão "tão certo como dois mais dois são quatro" tem um problema grave. É que dois mais dois pode ser, digamos, zero. E tudo depende de onde "estamos", ou das premissas iniciais.

Mas tudo bem: um argumento matemático depende de pressupostos e axiomas. Sejam os de Euclides (existe o ponto!), ou os da teoria dos conjuntos — como o fundamental Axioma da Escolha. Ou seja, uma vez estabelecidas as definições iniciais, os procedimentos matemáticos são precisos e inequívocos. Mas estabelecer as premissas é um exercício livre. Um amigo diz que, em matemática, pode-se definir qualquer coisa: difícil é provar fatos interessantes sobre ela.

Ora, o que é um fato interessante em matemática? Quem decide se uma pergunta é interessante? No início do século 20, David Hilbert anunciou uma lista com os 23 problemas que julgava os mais importantes da matemática. Conhecidos como Problemas de Hilbert, imediatamente se tornaram perguntas que interessam a todos os matemáticos — e algumas delas permanecem sem uma resposta completa. Em escala mais rarefeita (e atual), a influência do sistema editorial - e de financiamento de projetos - é também importante. Sobretudo por refletir o paradigma da comunidade científica relevante. Em outros termos: é possível que a decisão sobre quais são os problemas importantes em matemática seja, sobretudo, um fenômeno social.

Mas talvez a coisa mais curiosa desta conversa seja a impressão equivocada de que matemática trata de matemática: nada mais inexato. Em 1947, Kurt Gödel apresentou-se em Trenton para uma audiência a respeito de sua cidadania norte-americana — conta-se inclusive que viajou de Princeton a Trenton junto dos amigos Oskar Morgenstern e Albert Einstein. Sabendo que seria examinado nesta audiência, Gödel estudou a constituição daquele país e percebeu contradições lógicas: uma das constituições-modelo da democracia moderna admitiria o surgimento de um ditador e um regime autoritário. A história vai mais longe: ao anunciar sua descoberta para o juiz que o examinava, este teria desconversado e encerrado a audiência.

E se o assunto for desenhar um sistema de votação, a matemática tem considerações importantes. Suponha que uma sociedade precise escolher entre algumas alternativas. Existe uma regra que transforme as preferências individuais em uma escolha social e ainda atenda a critérios razoáveis? O Teorema da Impossibilidade, de Arrow, é enfático ao afirmar que tal regra simplesmente não existe.

Exata, formal ou só divertida: talvez nem seja importante classificar a matemática. Independente do rótulo, os problemas que nos trazem o brilho aos olhos continuam por aí: os do Hilbert, os da Emília, os meus, os vossos. Exata deve ser nossa coragem para atacá-los.

*

Edgard Pimentel é pesquisador do Centro de Matemática da Universidade de Coimbra e professor da PUC-Rio.

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