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Matemática em tempos de cólera

O impacto de conflitos internacionais na ciência

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Edgard Pimentel

A questão fundamental acerca dos conflitos são suas consequências para a vida das pessoas. Desde as vidas perdidas e ameaçadas, até aquelas cujo cotidiano se altera diante do terror, seja pelos deslocamentos, seja por qualquer interrupção que, simplesmente, não precisava ocorrer. Em um outro nível, estão os efeitos sobre a civilização; basta ver a destruição da cidade síria de Palmira, inscrita no Patrimônio da Humanidade da UNESCO em 1980, ou o saque aos sítios arqueológicos de Mari, Ebla e Emar, também na Síria. Mas há as consequências sobre o funcionamento da ciência, não tão evidentes no noticiário, mas nem por isso menos importantes.

A reunião científica que celebra e orienta a matemática mundial é o Congresso Internacional de Matemáticos (ICM, na sigla em inglês). Em julho de 2022, essa reunião de referência aconteceria em São Petersburgo: já eram conhecidas as listas de palestrantes do mundo todo, que se preparavam para desembarcar em uma cidade vibrante, que respiraria matemática por um punhado de dias. Mas eis que chega a roda viva e carrega o ICM pra lá: devido à invasão da Ucrânia, a União Matemática Internacional anunciou que o congresso acontecerá de forma remota. Não foi a primeira vez que o ICM sofreu os efeitos do cenário político.

Arte ilustra pessoas negras com vestes típicas de países africanos. Elas estão sentadas no chão desenhando figuras geométricas chamadas Sona, tipicamente feitas na areia, que representam narrativas e outros conteúdos da matemática, originários do povo Tshokwe, do nordeste de Angola.
Ilustração: Julia Jabur. A arte remete à geometria Sona, desenhos feitos na areia que representam narrativas e outros conteúdos da matemática, originários do povo Tshokwe, do nordeste da Angola. - Instituto Serrapilheira

Em 1936, o congresso aconteceu em Oslo, em uma Noruega que integrava a Liga das Nações – a mesma que em 1935 havia imposto sanções à Itália pela ocupação da Etiópia. Em resposta às sanções, Mussolini dificultou a participação italiana no congresso e o dano científico recaiu sobre a área de geometria algébrica, uma vez que àquela altura seus principais expoentes eram italianos. Situação semelhante aconteceu com a topologia, cuja representatividade sofreu com a ausência de grandes nomes da matemática russa, já que os noruegueses haviam oferecido exílio a Trótskii. Pode-se imaginar que essa acolhida não tenha aumentado a popularidade do país junto ao Politburo de Stálin.

O Prêmio Nobel da Paz de 1935 foi atribuído ao jornalista e pacifista alemão Carl von Ossietzky, responsável por denunciar o rearmamento e remilitarização da Alemanha – fato que não elevava a estima do comando nazista por Oslo. Por outro lado, a legislação antissemita nazista criou um volume importante de matemáticos de ascendência judaica sem emprego nas universidades alemãs, muitos dos quais se utilizaram do ICM em Oslo para buscar posições ou simplesmente interagir com colegas da comunidade internacional. Em resumo, uma única edição do evento de referência da profissão retrata a instabilidade em que está inserido.

Agora, se consideramos os deslocamentos de pessoas acarretados pelos conflitos, há impactos relevantes no estoque de conhecimento de uma sociedade. Exemplo recente desses êxodos foi a migração de judeus europeus nos anos 30 e 40 do século passado. Se, por um lado, houve um impacto positivo nos países de destino – vide Albert Einstein e o Instituto de Estudos Avançados em Princeton –, por outro, quantas medalhas Fields e prêmios Nobel perderam-se ao longo da travessia?

Aqui, o recorte precisa ser ampliado: qual foi o impacto da escravidão no estoque de conhecimento dos povos africanos arrancados de sua terra? Uma história da matemática africana obliterada por séculos do comércio de gente vem sendo revelada.

Por exemplo, sabe-se que no idioma Yoruba, falado na região da atual Nigéria, o número 45 diz-se como "subtraia cinco e subtraia dez de três vezes vinte". Parecido com o quatre-vingt-dix, falado no berço do Iluminismo, a maneira Yoruba de contar é evidência da familiaridade deste povo com os números e suas operações. Aliás, a quantidade "vinte" funciona como um bloco: quarenta diz-se duas vezes vinte, cem é dito cinco vezes vinte, e dezenove é dito vinte menos um.

Destreza com os números, aliás, não faltava a Thomas Fuller. Nascido entre a Libéria e o Benin, Fuller foi escravizado e transportado para os Estados Unidos em 1724, aos catorze anos. Sua habilidade com cálculos mentais chamava a atenção do seu entorno e ele era capaz de responder, em cerca de dois minutos, quantos segundos havia em um ano e meio. Morreu em 1780, sem receber instrução formal. E imaginem se tivesse recebido!

E há o matemático e astrônomo Muhammad Al-Kishwani, que estudou em Katsina, atual norte da Nigéria. Sua principal obra apareceu em 1732, e tratou da construção de quadrados mágicos de ordem 11. Al-Kishwani morreu no Cairo, em 1741.

Para combater um vírus mortal ou preservar o ambiente, ou mesmo analisar quantidades massivas de dados, a ciência é necessária. Já a irracionalidade, que ameaça a vida, não. Não é preciso ser um Thomas Fuller para escolher direito.

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Edgard Pimentel é pesquisador do Centro de Matemática da Universidade de Coimbra e professor da PUC-Rio.

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