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Onde a física quântica encontra a vida

Fenômenos estranhos do micromundo reverberam em nós, diz a biologia quântica

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É comum a física quântica ser descrita como "contraintuitiva". E não é para menos: afinal, uma teoria que fala de átomos que atravessam "paredes" como fantasmas, partículas distantes entre si que se comunicam como que por telepatia, e elementos que existem em mais de um lugar ao mesmo tempo, indo de encontro às leis da física clássica que conhecemos, soa no mínimo estranha. Boa parte dos cientistas considera, contudo, que suas esquisitices se restringem ao mundo microscópico – aquele dos átomos, elétrons e prótons –, mas que elas não afetariam o mundo visível das coisas grandes e vivas. Não é o que diz, entretanto, uma área relativamente nova na ciência: a biologia quântica.

Aqui cabe uma ressalva: quando falamos de átomos atravessando "paredes" (mais precisamente, o fenômeno conhecido como efeito túnel), partículas que se comunicam por "telepatia" (emaranhamento quântico) e objetos capazes de desempenhar mais de um estado ao mesmo tempo (superposição), isso nada tem a ver com fenômenos sobrenaturais. De fato, o termo "quântico" caiu nas graças dos místicos, mas práticas como "terapia quântica" e "dieta quântica" não são científicas e não têm relação alguma com a física quântica de verdade.

Arte ilustra um pássaro pisco-de-peito-ruivo permeado por bolinhas; as bolinhas também preenchem círculos de diferentes tamanhos em interseção
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Pois bem. O que os "biólogos quânticos" (na verdade ainda nem há uma forma oficial de chamar os estudiosos da área) acreditam é que os fenômenos que acontecem no micromundo e são descritos pela física quântica têm, sim, consequências no mundo macroscópico, regido pelas leis da física clássica newtoniana. Mais especificamente, eles teriam consequências no mundo vivo. Deixariam nele uma "assinatura quântica".

O leitor pode questionar: mas isso não é óbvio? Se somos todos compostos de átomos, é de se esperar que o que acontece no mundo microscópico tenha impacto no mundo que conseguimos ver. Afinal de contas, "a biologia é como se fosse uma química aplicada, e a química é como se fosse uma física aplicada, então não seria tudo física quando você chega nos fundamentos das coisas?", questionam retoricamente o professor de genética molecular Johnjoe McFadden e o físico teórico Jim Al-Khalili no livro "Life on the Edge: The Coming of Age of Quantum Biology" [A vida na fronteira: a chegada da era da biologia quântica], de 2014.

E é verdade. Se a biologia envolve, em última instância, a interação entre átomos, então as regras do mundo quântico devem, de fato, operar nas menores escalas dos organismos vivos, afirmam os autores. Mas o que a ciência diz até então é que estas regras operam apenas nestas escalas, porém não geram efeitos relevantes no mundo que enxergamos. Nós não atravessamos paredes nem podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo, ainda que as partículas dentro de nós sejam capazes disso. Por que há essa fronteira entre o universo visível e o universo que sabemos que existe nas menores escalas?

A evidência em favor da biologia quântica indica que os fenômenos quânticos cruzam essa fronteira e não somente geram um impacto no mundo vivo, como esse impacto não é trivial. Há indícios de fenômenos quânticos como superposição e efeito túnel em diversos processos biológicos, da fotossíntese ao funcionamento de enzimas. Um estudo publicado na "Nature" em 2004 mostrou que o pisco-de-peito-ruivo, ao migrar pelo planeta, o faz como se sua retina "utilizasse" emaranhamento quântico entre elétrons para se guiar a partir do campo magnético da Terra. A ave, aliás, acabou se tornando o garoto-propaganda da biologia quântica.

Não há nenhuma prova irrefutável de que a biologia quântica não exista, e isso basta para a ciência. O problema é que tampouco temos instrumentos com tecnologia suficiente para obter a prova irrefutável de que ela exista. Isso porque um dos maiores desafios da física quântica é, justamente, a medição. Sabemos que os objetos quânticos fazem coisas esquisitas, mas, no momento em que vamos observá-los, eles perdem esse caráter e passam a se comportar como um objeto clássico qualquer, ou seja, regido pelas regras da física clássica. Submeter a um instrumento científico uma propriedade quântica, como apontar em muitas direções simultaneamente, implica transformá-la em uma propriedade convencional – apontar em uma única direção.

Aí que entra a engenheira quântica brasileira Clarice Aiello, de 39 anos, líder do Centro de Biologia Quântica na Universidade da Califórnia em Los Angeles, a UCLA. Seu objetivo é se valer das tecnologias da física quântica para construir instrumentos que permitam a experimentação e a medição quânticas na biologia. "Quando objetos quânticos começam a interagir entre si, acontece uma reação descontrolada que mata esse caráter quântico", explica. "Tudo que começa quântico morre clássico. É por isso que vivemos em um mundo clássico. E daí vem o desconforto que a mecânica quântica nos causa de início."

Como é fácil matar esse caráter quântico em qualquer objeto, o desafio da engenharia é descobrir formas de deixar o sistema quântico o mais protegido possível. Isso inclui, por exemplo, manter chips quânticos em temperaturas muito baixas para diminuir a energia termal de interação, e usar câmaras de vácuo para evitar colisão entre átomos. "Mesmo o mais perfeito computador quântico vai morrer clássico. Ele só vai nos dar informação quântica antes desse tempo de termalização e de perder seu caráter quântico", diz Aiello.

Por isso a biologia quântica também pode ser confusa, ao propor que fenômenos quânticos estejam acontecendo em temperatura ambiente e com consequências importantes no funcionamento biológico das coisas. "Embora, na biologia, esse caráter quântico também acabe sendo "puxado" pelo comportamento clássico em um tempo bem curto, ainda assim os fenômenos quânticos conseguem ter uma influência e alterar os sistemas biológicos", destaca a engenheira.

Vale dizer que tempo curto, no mundo quântico, é curto mesmo. No caso, por exemplo, da captura de energia do sol pelas plantas no processo de fotossíntese, esse tempo é da ordem de um picossegundo, que equivale a 10-12 segundos, ou um trilionésimo de segundo. Já no caso da propriedade quântica estudada por Aiello, os spins dos elétrons, as coisas são mais lentas – levam de um bilionésimo a um milionésimo de segundo. "Ou seja, se os fenômenos quânticos acontecem ali de fato, isso significa que a biologia quântica pode sobreviver por um microssegundo – o que, acredite, já basta para alterar macroscopicamente, por exemplo, reações químicas."

Para a cientista, não restam dúvidas que os fenômenos quânticos têm influência no mundo vivo, seja em cultura de células, nas drosófilas ou no esquilo que a visita diariamente na varanda da sua casa e que apareceu quando conversávamos por videochamada. Muitos experimentos já foram feitos em escala química, em soluções de proteínas, e os fenômenos quânticos estavam ali presentes. "Mas o próximo passo é a confirmação em experimento comportamental, e há muita coisa entre uma proteína e uma drosófila."

Na prática, seu trabalho implica deitar e se rastejar no chão para construir algo que ainda não existe em lugar nenhum no mundo, uma espécie de microscópio com bobinas – bem diferente dos microscópios que costumamos ver em laboratórios de biologia. "É uma mesa ótica, grandona, com um monte de espelhos e lasers, que tem a função de nos ajudar a olhar dentro de uma célula. Ao redor da amostra biológica, colocamos bobinas que são a fonte de campo magnético. Nossa ideia é olhar para o que acontece na célula e controlar isso mudando o campo magnético."

É uma aposta arriscada, mas que pode ser revolucionária. Aiello acredita que a biologia quântica esteja hoje onde a computação quântica estava há 20 anos, e atualmente ninguém duvida de seu potencial. "Todo mundo está começando do zero, o que é uma oportunidade grande para o Brasil", ressalta a engenheira, que estabeleceu uma parceria com o Instituto D’Or de Ensino Pesquisa (Idor) para desenvolver a área no país. "A gente precisa formar cientistas interdisciplinares para trabalhar nesse campo hoje e planejar onde queremos estar no futuro."

E, embora para Aiello tudo que pareça magia seja ciência não explicada, ela não descarta a possibilidade de, nesse futuro ainda distante, podermos falar em "cura quântica" – não no sentido esotérico da moda. "Se entendermos como os fenômenos quânticos afetam reações químicas no organismo, talvez daqui a uns 50 anos a gente consiga dirigi-las para tratar doenças, da mesma forma que fazem os remédios, mas controlando o comportamento quântico endógeno (ou seja, que não precisa de manipulação genética) que parece existir nos seres vivos. Hoje, no entanto, isso é apenas ficção científica."

Por enquanto, o que temos são muitas perguntas fundamentais e, conforme aventaram McFadden e Al-Khalili, "o mistério de como a estranheza quântica consegue sobreviver em corpos vivos quentes, úmidos e bagunçados".

*

Clarice Cudischevitch é jornalista, coordenadora do blog Ciência Fundamental e gestora de Comunicação no Instituto Serrapilheira.

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