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Sambaquis: uma janela para o passado da Amazônia

A expedição de um grupo de arqueólogas a uma antiga morada indígena no Pará

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Gabriela Prestes Carneiro Lana Guimarães Vitória dos Santos Campos

Uma das perguntas mais frequentes que um(a) arqueólogo(a) escuta é: "Nossa, mas por que vocês se interessam por coisas tão antigas? Para que servem?". Bem, é porque nós, arqueólogos(as), acreditamos que uma das chaves para a conservação dos ecossistemas no futuro esteja embaixo da terra. Procuramos identificar quais plantas eram cultivadas no passado, quais as fontes de proteína da população da época e como eram construídas as moradas.

A arte da arqueologia é o trabalho em equipe. A nossa, composta por arqueólogas, biólogas, geógrafas, antropólogas, professoras, em sua maioria mulheres, tem como objetivo mapear e estudar os sambaquis que se estendem em uma faixa de 500 quilômetros ao longo do rio Amazonas, de Terra Santa a Porto de Moz, no Pará, em um projeto chamado Janelas Abertas para a Biodiversidade do Baixo Amazonas, JABBA. Os sambaquis — antigas moradas indígenas à base de terra e conchas, construção hoje em desuso no país — figuram entre os mais antigos sítios arqueológicos da América do Sul, remontando a até 8 mil anos atrás.

Arte ilustra um sambaqui, antiga morada indígena. Em cada ponta há uma mulher indígena. Em volta há conchas e outros objetos encontrados neles.
Ilustração: Lívia Serri Francoio - Instituto Serrapilheira

No litoral do Brasil há várias pesquisas sobre eles, mas no interior da Amazônia esses sítios ainda foram pouco investigados. No baixo rio Amazonas, por exemplo, a última escavação ocorreu na década de 80, no sambaqui da Taperinha.

A boa conservação desses sítios se deve ao carbonato de cálcio das conchas, que preserva os restos dos animais (espinhas de peixe, vértebras, dentes) e de plantas (fragmentos de troncos de árvore, sementes, pólens). A identificação dessas espécies permite não só reconstruir o ambiente do entorno, mas também documentar como essas paisagens se transformaram ao longo do tempo. Agora buscamos entender como os sambaquis foram formados, quando e quais povos passaram por esses locais. Cada camada arqueológica é, para nós, como o capítulo de um livro.

Nossa equipe, de 21 pessoas, acabou de voltar do sambaqui Ponta do Jauari, localizado entre os municípios de Curuá e Alenquer, no Pará. Tal sítio foi descoberto há 83 anos pelo missionário alemão Protásio Frikel, que lá coletou dezenas de cachimbos em cerâmica em forma de tubo decorados de um modo muito particular, os "cachimbos tubulares". A escavação desse sítio só ocorreu agora em 2022 e vários desses cachimbos foram encontrados. Moramos 15 dias num barco de linha que navega pelos rios amazônicos, dormindo em redes amarradas uma em cima da outra, formando beliches e até treliches que impossibilitavam qualquer privacidade: quando uma acordava para ir ao banheiro, todas sabiam. Nosso cotidiano era rodeado de canecas e pratos coloridos de plástico, botas e chinelos espalhados por todos os cantos. Com tanta gente, foi preciso montar uma organização de equipes que se revezavam nos cuidados da alimentação e limpeza.

Já na superfície do sambaqui identificamos ossos de peixe-boi, pirarucu, tartaruga, além de uma quantidade enorme de mariscos — um indicativo da alimentação da população. Hoje a região também é composta por várias plantas comestíveis como a vitória-régia, a aninga e o aguapé (antigamente utilizado para produzir sal). Embora as atuais referências que temos acerca do consumo de mariscos venham das áreas costeiras, sabe-se que até poucos anos atrás os mariscos (de rios) também eram consumidos na Amazônia, e seu desaparecimento das refeições se deveu à invasão europeia, que aos poucos transformou e mesmo deu cabo de receitas de origem indígena. Voltar para o passado, redescobrir esses antigos alimentos e as formas de cultivá-los pode ser uma chave para repensar estratégias mais sustentáveis e conscientes para o meio ambiente, algo que os povos indígenas têm falado há décadas. Janelas do passado que se projetam no futuro, os sambaquis guardam algumas lições para a conservação do planeta.

Desde seu surgimento no país, a arqueologia é uma disciplina elitista e fechada. Até os anos 80, as escavações costumavam ser lideradas por um ou dois arqueólogos, e os demais eram trabalhadores "anônimos". Esse formato do "fazer científico" precisou ser repensado: um sítio arqueológico não é propriedade de um pesquisador, seus verdadeiros guardiões são seus moradores. Hoje, nossa equipe envolve pesquisadores e estudantes universitários, professores da rede pública, moradores e agentes das secretarias de Meio Ambiente.

Na próxima incursão, o grupo deve ficar ainda maior, pois pretendemos levar conosco alunos ribeirinhos do Ensino Médio. Acreditamos que as escavações são uma oportunidade para motivar crianças e jovens da região a ver o ensino superior e a carreira de cientista como um dos caminhos possíveis. A arqueologia só faz sentido quando se insere no presente e se preocupa com o futuro.

*

Gabriela Prestes Carneiro é professora do curso de Arqueologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).

Lana Guimarães e Vitória dos Santos Campos são arqueólogas, mestrandas da Universidade Federal do Pará e bolsistas do JABBA.

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