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Como eu coletei cérebros de baleia no Brasil

Uma jornada científica inédita no litoral da Bahia

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Kamilla Souza

Caravelas, uma cidadezinha no extremo sul da Bahia, é um daqueles raros locais do mundo em que você vai dar uma caminhada matinal na praia e tropeça num osso de baleia.

Entre os meses de agosto e outubro, período reprodutivo desses cetáceos em águas brasileiras, elas chegam a Caravelas e são um espetáculo à parte. A convite do Instituto Baleia Jubarte, participei de expedições científicas e eventos de encalhe que, abundantes (e naturais) nessa época, nos oferecem belas oportunidades para coleta de materiais biológicos. E se você leu meu texto anterior sobre a coleção de cérebros de golfinhos, talvez já tenha sacado o que eu iria fazer naquela localidade.

arte ilustra uma baleia grande na beira de uma praia. pessoas em um barquinho e na areia trabalham para extrair o cérebro, que é bem pequeno
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Coletar cérebros de cetáceos, sejam golfinhos ou baleias, é sempre desafiador. Mas quando se trata de baleias, a complexidade é ainda maior. Baleias jubarte, por exemplo, têm cerca de 16m de comprimento e 35 toneladas. A logística de manejo e extração de órgãos é um obstáculo significativo, limitando estudos desses animais em comparação a outros. Mas ter acesso ao cérebro desses gigantes marinhos abre portas para diversas linhas de estudos neuroanatômicos. Desde descrições estruturais a investigações de possíveis patologias, contribuindo não só para um melhor conhecimento desses animais, mas também no desenvolvimento de estratégias de conservação em prol do grupo.

Não demorou muito para que eu entrasse em ação. Dois dias depois da minha chegada, já recebemos uma notificação de encalhe. O animal estava numa praia bastante frequentada e havia muitos curiosos ao redor. Lembro de ter visto dezenas de crianças de uniforme, como se assistir àquele acontecimento fosse uma atividade escolar. Na verdade, embora inusitado, é um ótimo momento para reforçar práticas de educação ambiental e explicar o trabalho que realizamos.

O animal estava na areia, isolado por uma fita para evitar que as pessoas se aproximassem, pois não se sabia o que havia causado sua morte e era preciso coibir os riscos de infecção. Era uma baleia jubarte recém-nascida, com cerca de um mês de vida. O filhote já tinha mais de quatro metros de comprimento, o que inviabilizava sua necropsia em laboratório. A equipe, vestida com equipamentos de proteção, iniciou ali mesmo as medições, para então recolher amostras de órgãos. Quando retirávamos a camada de gordura do animal, uma das crianças apontou e gritou: "Olha, parece frango!".

Para mim, aquela experiência era extasiante. A anatomia do crânio das baleias varia entre as espécies e é necessário um planejamento adequado para extrair o órgão de forma eficiente. Tudo precisa estar alinhado. Afinal, na praia lidamos com fatores limitantes como a luz do dia e a tábua de marés, e era a primeira vez que eu coletava um cérebro de baleia no Brasil.

Retirar o cérebro do animal é uma das tarefas mais complexas e demoradas de uma necrópsia, e por vezes temos que escolher entre remover o cérebro ou outro grande órgão, como o coração. Encarei o desafio e a equipe se juntou a mim para finalizar a tarefa a tempo. Ao expor o cérebro, ouvi uma voz ao fundo: "Olha só, um animal tão grande com um cérebro tão pequeno". Bom, em termos absolutos, não estamos falando de um cérebro pequeno, uma vez que jubartes têm cérebros que pesam quase 6kg em média, enquanto o nosso pesa cerca de 1,5kg. Mas em termos relativos, não podemos negar que o curioso tinha razão: num corpo da ordem de toneladas, um cérebro de 6kg de fato parece pequeno.

Era hora de voltar ao laboratório, organizar as amostras coletadas e deixar tudo pronto para o próximo encalhe. E ele aconteceu três dias depois. Logo pela manhã começou a circular no WhatsApp da equipe um vídeo: um pescador passa de barco por uma carcaça de baleia e diz: "Está fresquinha, acabou de morrer". A equipe então ponderou se era possível localizar o animal. Imediatamente me dispus a ir.

Mas dessa vez a situação era mais desafiadora. A baleia estava isolada numa ilha e precisaríamos de um barco para chegar até ela. E mais: existia a possibilidade de o animal não estar tão fresco, o que inviabilizaria nosso estudo. Tínhamos que avaliar os prós e os contras de tamanha logística de deslocamento.

Optamos por ir. Navegamos por pouco mais de uma hora, tentando localizá-la com o auxílio de um binóculo, e nada. Àquela altura, os urubus, que costumam ir atrás de carcaças, foram nossos aliados e acabamos por encontrá-la. Sem conseguir se aproximar da praia, a embarcação atracou. Entramos num bote, que tampouco foi capaz de chegar até a areia e quase virou devido às ondas fortes. Pegamos nosso material, protegido por caixas de plástico, e fomos nadando até a ilha. Mais uma vez, era um bebê de baleia jubarte. Iniciamos as coletas de tecidos.

Na condição em que estávamos, a maré era um inimigo à espreita, subindo cada vez mais e nos pressionando a finalizar o trabalho. O esgotamento físico era óbvio, mas não havia tempo para descansar. O apoio da equipe foi essencial, me ajudando a ter a força que me faltou em alguns momentos e a manter a calma. Chamamos alguns moradores e com uma corda afastamos o animal da maré para ganhar tempo.

Mal retiramos o cérebro e veio uma onda que levou boa parte da baleia. Eu, que já estava emocionada, me emocionei ainda mais com a sorte que tivemos. Mas agora havia outro problema: como voltar ao barco, com o cérebro num recipiente cheio de formol, além de nossas caixas de trabalho e todas as outras amostras? Víamos o bote ao longe, as ondas batiam forte e não sabíamos o que fazer.

Não tinha jeito: era preciso chegar no bote andando pelo mar com a água até o peito. A cada onda que vinha, parecia que iríamos virar com tudo. Deixamos o cérebro por último, contamos um intervalo de ondas e fizemos uma corrida com o órgão até o bote. E por fim retomamos a embarcação maior. Adrenalina a mil, todos exaustos e maravilhados com a experiência inédita.

Finalmente conseguimos coletar cérebros de baleia para pesquisa no Brasil – e, como sabemos que é comum entre os cientistas brasileiros, lidando com algumas adversidades.

*

Kamilla Souza é bióloga e pesquisadora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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